sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

A uma mulher amada- Safo


A uma mulher amada

Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro!
Quem goza o prazer de te escutar,
quem vê, às vezes, teu doce sorriso.
Nem os deuses felizes o podem igualar.

Sinto um fogo sutil correr de veia em veia
por minha carne, ó suave bem-querida,
e no transporte doce que a minha alma enleia
eu sinto asperamente a voz emudecida.

Uma nuvem confusa me enevoa o olhar.
Não ouço mais. Eu caio num langor supremo;
E pálida e perdida e febril e sem ar,
um frêmito me abala… eu quase morro … eu tremo.

(Safo)

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Não passaria daquela noite- Lameque


Amor reprimido adoece. Amor confessado alivia. Tomou uma ducha, barbeou-se, usou seu melhor perfume. Traje de missa. Pegou o carro e rumou para Copacabana. Avenida Atlântica.

Encostou no meio-fio. Ela veio ao seu encontro. Trajes de puta. Inclinou o corpo para dentro do automóvel. “Quer se divertir?” “Quero casar com você” “Me conhece?” “De vista. Passo aqui todos os dias”. “Por que eu?” “Não sei. Paixão tem destas coisas”. O sapo virou príncipe, Gata Borralheira, Cinderela. Ela largou as calçadas da vida, ele o emprego. Vivem de amor.

Vermelho 17- Lameque



Gozo realizado, ela contempla o rubro cano curto do amante. Lembra do marido, idiota de grosso calibre, desempenho pífio e, inspirada por centúrias nostradâmicas, sentencia:
- 22 nunca será 14.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Pequena Bio de Ubaldo


O baiano João Ubaldo Ribeiro nasceu em Itaparica no dia 23 de janeiro de 1941.Passou a infância em Sergipe e em Salvador formou-se em Direito.Na Califórnia graduou-se em Administração pública.É jornalista e na literatura estreou com o livro de contos “Reunião”,em 1961,junto com outros autores baianos.Seu primeiro romance foi “Setembro não tem sentido”,em1968.Vieram:”Sargento Getúlio”(71), “Vencecavalo e o Outro Povo”(contos-74) , “Vila Real”(romance-79), “Livro de Histórias” (81),”viva o povo brasileiro” (84),”O Sorriso do Lagarto” (94), “Política” (ensaios-83),”Vida e Paixão de Padonar,o Cruel” (narrativa juvenil-83). Foi considerado autor de um tipo de Regionalismo inaugurado por Guimarães Rosa.E a polêmica: A Casa dos Budas Ditosos” (Editora Objetiva,RJ.1999.Coleção Plenos Pecados: Luxúria) romance erótico lançado por Ubaldo.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Luxuria - A Casa Dos Budas Ditosos


Luxuria - A Casa Dos Budas Ditosos
(João Ubaldo Ribeiro)





Tudo no mundo é secreto” eis a epígrafe e o autor na introdução vai logo dizendo que os originais são de autora baiana de 68 anos, que mora no Rio de Janeiro, e foi transposto a partir de “fitas gravadas”.
O título faz referência a um objeto: dois budazinhos que a narradora comprou em Banguecoque- “um macho e um fêmea” fazendo sexo ,essas coisas milenares de chinês.Havia um templo com imagens iguais a essas,chamado a Casa dos Budas Ditosos (da sorte) ,aonde os noivos iam para passar as mãos nos órgãos genitais delas.Era uma espécie de aprendizado ou familiarização,uma introdução ao casamento “bom de cama”. Em Roma antiga acariciava-se a glande de Príapo (que foi substituído por São Gonçalo,no nosso politeísmo católico).

Desde o início a narradora faz suspense dizendo que tem “essa doença que vai lhe matar”. Mas, afirma que “a perspectiva de ser enforcado amanhã de manhã opera maravilhas para a concentração”.O que a impulsiona neste depoimento “sociohistoricoliteropornô” (uma palavra só) para esse povo que nunca leu Chardelos de Laclos.

Memórias de uma libertina, poderia ser um subtítulo adequado a este romance. Ela é neta de “um nazista de nascença como todo alemão”. Ela transa de todas maneiras com machos e fêmeas.Seus “casos” formam o conteúdo do livro. A narradora também vai logo avisando que não gosta “de velho metido a alegre”.

Sexo oral,anal,manual,incestuoso,grupal e de várias outras maneiras vão quebrando um por um,ou muitos de uma vez, os tabus puritanos que tanto afligem o mundo ocidental. “Só fazíamos ,depois ele ia embora”, é por exemplo o que ela declara sobre um dos seus amantes.

A época da juventude(anos 50/60) dela foi de repressão, por isso pensou até em fazer operação que recuperasse sua “condição virginal”: “Tudo começou com um “meter de língua nas orelhas(...)apalpar,pinicar”, resume.

Algumas páginas são pretas com as letras em branco.Outras trazem ilustrações eróticas.Mas,o texto supera tudo isso: “sou contra essa teoria segundo a qual, os brasileiros têm belas bundas, e alimentam uma fixação patológica por bundas somente por causa dos africanos”.

Querendo justificar sua prática ela diz que Noé,da Bíblia, também teria cometido incesto. Ela quer ser “livre!Moderna”.É estéril e repete o que Nelson Rodrigues disse: `Se todo mundo soubesse da vida sexual de todo mundo,ninguém se dava com ninguém' . Ela ensina como ser penetrada por trás, sem dor, e diz que odeia essas pessoas que se acham “povo”.

“Ninguém neste mundo presta,muito menos eu (...) é bom que haja mistérios em nossas biografias” .Ela queria que a dela fosse como ela mesma era: “um maremoto de tesão latejante (...) como a Luxúria e seu chamado à devassidão,à dissipação e à entrega de todos os gozos de todos os matizes até chegar à morte lasciva (...) em um espírito imisericordioso e invencível (...) um sadismo light”.

Sobre o tio casado ela declara: “Cansei de ficar nua com ele correndo atrás de mim no quarto e eu fazendo pose de sílfide e falando parnasianamente, arcadicamente, romanticamente (...) sempre tive boas coxas e sei usá-las como órgão sexual”.

Sobre a escrita oficial, ela também não quer purezas: “Como se se pudesse pedir a um chinês para ele falar como se escreve(...) certas palavras nunca adquiriram passaporte para a escrita e, quando conseguem são condenadas à clandestinidade como fazem com gente (...) eu quero escrever um livro louco- libertar todas as palavras”.

Como disse o saudoso ator italiano Vittorio Gassman certa vez, a vida deveria ser duas; uma para ensaiar outra para viver a sério. Parece que nossa protagonista quer consertar esta falha divina .Em tudo ela quer exagero. Pênis para ela tem de ser grande.Em outro momento fala que nenhuma mulher sadia tem nojo de esperma e que o incesto é natural e que no início,quando não sabia que era estéril,já não queria ter filhos por não ter saco para crianças e ainda mais sem saber nem quem era o pai,pois fazia sexo demais.

Reafirma a teoria de que baiano só protege baiano.

A também exercita o expediente metalinguístico da “conversa com o leitor”: “Largue este texto e não perca seu tempo (...) quero que quem me ler fique com vontade de fazer sacanagem...”.

A doença dela,vai logo dizendo,não é câncer,doença do reprimido,da libido encarcerada,da falsidade extrema em relação à própria natureza: “As células traídas e frustradas então se rebelam,mandam emissários subversivos para todas as partes do corpo e geralmente vencem e destroem o organismo”.
São frases bombásticas: a vida é uma mentira,nem Cristo soube explicar o que era a verdade diante do Império Romano,ou, “pode-se estar apaixonado por duas ou mais pessoas ao mesmo tempo” e “Eu sou a voz de Deus (...) Satanás odeia a Luxúria,não é invenção dele,assim como a bondade.Ele só as usa para seus fins maléficos (...) Não quero reencarnar,acho essa obrigação um saco!”.

No final ela não se redime,ao contrário acelera o processo de catarse através de uma narrativa sacolejada : "Minha doença é um aneurisma no meio do cérebro,inoperável (...) já deixei instruções para doarem o que poder ser doado e tocarem fogo no resto (...) dormindo ou acordada,minha cabeça pode explodir em sangue”.

Não se considera uma pecadora católica: “Quem peca é aquele que não faz o que foi criado para fazer(...)Deus me terá em Sua Glória e sei que Ele agora está rindo”.

É uma narrativa de fôlego, convulsiva e sem diálogos. João Ubaldo atreveu-se a mergulhar na Luxúria e saiu de lá com um estranho sorriso nos lábios. E os seus leitores?



Autor: Moisés Neto

Professor com pós-graduação em Literatura, escritor, membro da diretoria do SATED (Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão em Pernambuco).

domingo, 22 de fevereiro de 2009

2012 - Ricardo Pozzo

O mar retrocederá
o tempo
até que o fruto
da árvore "esquecimento"
perca seu sabor.

E nossa soberba,
que nos iguala
aos anjos rebelados,
e nossa insatisfação,
abalizada por
(psic) analistas
renomados,

sejam dissolvidas.

Ricardo Pozzo

sábado, 21 de fevereiro de 2009

O Sádico- Nina


O sádico


Vidinha estava cansada de sua “vidinha” mais ou menos de todos os dias; há muito, sua existência perdera o sentido e alternava sua rotina entre o casamento estático, a casa por arrumar, os filhos desajustados e a profissão insalubre.Naquele dia acordara mais cedo, uma forte dor de dente a expulsara da cama antes mesmo dos primeiros raios de sol, fazia tempo que não assistia tal fenômeno e apesar das fisgadas dilacerantes, observou pela janela a bela paisagem no horizonte- como era bonito o nascer daquele astro, começava a aparecer tímido e depois criava uma força descomunal! Ah, como sentia falta de vida!

Entrementes, a dor perdurava e aumentava a cada minuto, pensou que talvez a maior agonia do ser humano residia na dor de dente; começava fina e aguda e evoluía para um sofrimento grave, que tomava conta de todo seu cérebro.Quando o telefone irrompeu sala adentro, já havia tomado cinco analgésicos poderosíssimos e dez anti-inflamatórios e nada da agonia passar, atendeu com a baba escorrendo pelo bocal, era sua prima, que por acaso vinha a ser representante de produtos dentários.Naquele momento, teve a certeza da provisão divina e tomou nota do número telefônico de uma clinica dentária popular nas bandas do Engenho de Dentro, agradecera aos céus ao saber que os serviços por lá não eram caros, pois, problemas nos dentes em época de recessão seria pior que um assalto.

Em menos de uma hora depois, adentrava o recinto simples no subúrbio do Rio de Janeiro e punha-se a ler uma revista ridícula de celebridades, que pareciam nunca sofrer dos dentes, enquanto aguardava seu tão temido momento, afinal, morria de medo de dentista, para ela, todos não passavam de sádicos filhos da puta, que gozavam com o sofrimento alheio


De repente, a porta secreta se abriu e um Deus Grego surgiu, clamando por seu nome. Sentou-se na pavorosa cadeira indicada e imediatamente abriu a boca para o desconhecido, que a examinava meticulosamente da cabeça aos pés, até concluir:

-Dona Vida, a senhora esta com um canal por fazer, será um suplicio salvar esse dente, mas vou fazer o que posso. A propósito, a quanto tempo a senhora não nos faz uma visita?

-Sei lá, Doutor, tem tantas coisas que eu não faço faz tempo, o senhor acha que eu iria me preocupar com dente, algo tão pequeno?

-Pois é, existem pontos tão pequenos em nosso corpo que nos levam à morte e com os dentes não é diferente. Mas vamos ao trabalho.

Daniel era um homem sério e dedicado, um profissional qualificado, mas que guardava um estranho fetiche pelos dentes, não gostava de quaisquer dentes, mas, tão somente aqueles que possuíam uma irregularidade apreciável, nem grotescos e necrosados, pois não havia nenhuma beleza nas desgraças e nem tão bonitos, a ponto de ofuscarem as vistas.A bem da verdade, nunca tinha visto uma boca tão encantadora como a de Vidinha, pois, possuía a imperfeição na medida certa: um canal por fazer, cinco obturações, dois blocos, três sisos por arrancar, dentes amarelos e grandes, o que por certo demandaria um bom clareamento e um par de aparelhos corretivos: trabalho para toda vida, concluiu o belo homem mentalmente.Iniciou com fervor os trabalhos, uma anestesia aqui, algumas agulhadas ali, brocas acolá, todos esses instrumentos sádicos eram administrados com a mais perfeita harmonia pelas mãos do profissional habilidoso, enquanto suas carnes latejavam de libido, assistindo Vidinha se revirar de dor na cadeira da morte.

Era tanto desejo, tanto, que não conseguiu terminar o trabalho sem interrompê-lo, deu desculpas que iria atender o celular e trancou-se no banheiro, a lembrança da mulher tendo convulsões e espasmos, fez com que ao tocar sua glande, fosse arremessado ao longe um liquido viscoso e concentrado. Aliviado, voltou à tortura alheia, decidiu terminar sua obra de arte no próximo dia, afinal precisaria de muito tempo ao lado da sua musa de dentes imperfeitos.

Antes de sair, a secretária franzina passou o orçamento para Vidinha, que não entendeu nada, quando soube tratar-se de uma cortesia, voltou para casa intrigada, mas decidiu não questionar, acaso ele mudasse de idéia seria pior.Retornou, dois dias depois e foi a primeira a entrar, o homem recomeçou a sessão de tortura, mas desta vez com uma mão repousando sobre os seios de Vidinha, enquanto a outra trabalhava em sua boca e assim, a cada instante, ele percorria um pedaço diferente de seu corpo, ao que a presa não relutava, mas ao contrário, gostava.

Não tardou para que nas próximas visitas, o dentista arrancasse seu vestido e entre boticões e seringas, enfiasse seu membro voraz na franzina vagina da mulher, gozaram diversas vezes, enquanto ele a admirava boquiaberta.E assim, os dois seguem até os dias atuais, mesmo depois da separação de Vidinha e de seu casamento com Daniel, ninguém entende o porquê do tratamento interminável e do aparelho dentário que perdura em suas arcadas há nada menos que vinte anos.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Gotas de paixão - Giselle Sato


GOCCE DI PASSIONE

Lieve. Un soffio. La bocca dolce

Sfiora

Strappa un’ estasi di abbandono

Calice

Travasando occulti anfratti

Delineati.

Lingua intrisa, persa m’ incontra…

Dissolvo

Segreti mai condivisi

Sospiro. Desideri, esigenze, vizi e voluttà
tradução- Gennari

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Anais Nin






''Se me encontro perto de ti, o meu ser não se contrai nem se arrepia.
A fadiga terrível que me consome abranda.(…)
Uma fadiga dos sentimentos, do fervor dos meus sonhos, da febre das ideias, da intensidade das minhas alucinações.
Uma fadiga do sofrimento dos outros e do meu.Sinto o meu próprio sangue trovejar dentro de mim e o horror de tombar dentro dos abismos.
Mas se caírmos juntos, eu e tu, não hei-de ter medo.
Cairemos nos abismos, mas tu levarás as tuas fosforescências até ao fundo mais ao fundo.
Podemos tombar juntos e juntos subir nos espaço.
Eu estava completamente exausta por causa dos meus sonhos,não pelos sonhos mas pelo medo de não ser capaz de regressar.
Desnecessário regressar,agora.Hei-de encontrar-te em toda a parte aonde fôr, nas mesmas misteriosas regiões.
Tu também conheces a linguagem e os pressentimentos dos nervos.
Tu hás-de saber sempre o que estou a dizer, ainda que não o diga.''





Anais Nin



Je suis le plus malade des surrealistes








*******




Abraço -




Os braços foram-me tirados, cantava.


Fui punida por abraçar. Abracei.


Prendi nos momentos mais belos da minha vida.


Fechei nas mãos a plenitude de cada hora.


Os braços apertados no desejo de abraçar.
Quis abraçar a luz, o vento, o sol, a noite,
o mundo inteiro e quis retê-los.


Quis acariciar, curar, embalar, envolver, cercar.


Forcei-os e prendi de tal modo que se partiram;
partiram de mim"



Anaïs Nin




segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Gozo


Uma vez ja foi demais
Sexo maldito!
Me toma as rédeas
Um abismo de solicitudes!

Duas então
Devora o ventre em sensações
Solidão instigada e toque
Nas cores sujas do lençol

Lava teu membro
Sacia tua sede em mim
Pensa que é dono
Senhor de todo o mundo!

Mas no íntimo
Meu escravo e subjugado
Abusado, temido, idolatrado
Senhor de minhas vontades!

.
.
Me Morte

domingo, 15 de fevereiro de 2009

A dama do lotação- Nelson Rodrigues






Às dez horas da noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi bater na casa do pai. O velho, que andava com a pressão baixa, ruim de saúde como o diabo, tomou um susto:
— Você aqui? A essa hora?
E ele, desabando na poltrona, com profundíssimo suspiro:
— Pois é, meu pai, pois é!
— Como vai Solange? - perguntou o dono da casa. Carlinhos ergueu-se; foi até a janela espiar o jardim pelo vidro. Depois voltou e, sentando-se de novo, larga a bomba:
— Meu pai, desconfio de minha mulher.
Pânico do velho:
— De Solange? Mas você está maluco? Que cretinice é essa?
O filho riu, amargo:
— Antes fosse, meu pai, antes fosse cretinice. Mas o diabo é que andei sabendo de umas coisas... E ela não é a mesma, mudou muito.
Então, o velho, que adorava a nora, que a colocava acima de qualquer dúvida, de qualquer suspeita, teve uma explosão:
— Brigo com você! Rompo! Não te dou nem mais um tostão!
Patético, abrindo os braços aos céus, trovejou:
— Imagine! Duvidar de Solange!
O filho já estava na porta, pronto para sair; disse ainda:
— Se for verdade o que eu desconfio, meu pai, mato minha mulher! Pela luz que me alumia, eu mato, meu pai!


A SUSPEITA


Casados há dois anos, eram felicíssimos. Ambos de ótima família. O pai dele, viúvo e general, em vésperas de aposentadoria, tinha uma dignidade de estátua; na família de Solange havia de tudo: médicos, advogados, banqueiros e, até, ministro de Estado. Dela mesma, se dizia, em toda parte, que era "um amor" ; os mais entusiastas e taxativos afirmavam: "É um doce-de-coco". Sugeria nos gestos e mesmo na figura fina e frágil qualquer coisa de extraterreno. O velho e diabético general poderia pôr a mão no fogo pela nora. Qualquer um faria o mesmo. E todavia... Nessa mesma noite, do aguaceiro, coincidiu de ir jantar com o casal um amigo de infância de ambos, o Assunção. Era desses amigos que entram pela cozinha, que invadem os quartos, numa intimidade absoluta. No meio do jantar, acontece uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Carlinhos. Este curva-se para apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa, apenas isto: os pés de Solange por cima dos de Assunção ou vice-versa. Carlinhos apanhou o guardanapo e continuou a conversa, a três. Mas já não era o mesmo. Fez a exclamação interior: "Ora essa! Que graça!". A angústia se antecipou ao raciocínio. E ele já sofria antes mesmo de criar a suspeita, de formulá-la. O que vira, afinal, parecia pouco, Todavia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contato asqueroso. Depois que o amigo saiu, correra à casa do pai para o primeiro desabafo. No dia seguinte, pela manhã, o velho foi procurar o filho:
— Conta o que houve, direitinho!
O filho contou. Então o general fez um escândalo:
— Toma jeito! Tenha vergonha! Tamanho homem com essas bobagens!
Foi um verdadeiro sermão. Para libertar o rapaz da obsessão, o militar condescendeu em fazer confidências:
— Meu filho, esse negócio de ciúme é uma calamidade! Basta dizer o seguinte: eu tive ciúmes de tua mãe! Houve um momento em que eu apostava a minha cabeça que ela me traia! Vê se é possível?!


A CERTEZA


Entretanto, a certeza de Carlinhos já não dependia de fatos objetivos. Instalara-se nele. Vira o quê? Talvez muito pouco; ou seja, uma posse recíproca de pés, debaixo da mesa. Ninguém trai com os pés, evidentemente. Mas de qualquer maneira ele estava "certo". Três dias depois, há o encontro acidental com o Assunção, na cidade. O amigo anuncia, alegremente:
— Ontem viajei no lotação com tua mulher.
Mentiu sem motivo:
— Ela me disse.
Em casa, depois do beijo na face, perguntou:
— Tens visto o Assunção?
E ela, passando verniz nas unhas:
— Nunca mais.
— Nem ontem?
— Nem ontem. E por que ontem?
— Nada,
Carlinhos não disse mais uma palavra; lívido, foi no gabinete, apanhou o revólver e o embolsou. Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. A adúltera precisa até mesmo das mentiras desnecessárias. Voltou para a sala; disse à mulher entrando no gabinete:
— Vem cá um instantinho, Solange.
— Vou já, meu filho.
Berrou:
— Agora!
Solange, espantada, atendeu. Assim que ela entrou, Carlinhos fechou a porta, a chave. E mais: pôs o revólver em cima da mesa. Então, cruzando os braços, diante da mulher atônita, disse-lhe horrores. Mas não elevou a voz, nem fez gestos:
— Não adianta negar! Eu sei de tudo! E ela, encostada à parede, perguntava:
— Sabe de que, criatura? Que negócio é esse? Ora veja!
Gritou-lhe no rosto três vezes a palavra cínica! Mentiu que a fizera seguir por um detetive particular; que todos os seus passos eram espionados religiosamente. Até então não nomeara o amante, como se soubesse tudo, menos a identidade do canalha. Só no fim, apanhando o revolver, completou:
— Vou matar esse cachorro do Assunção! Acabar com a raça dele!
A mulher, até então passiva e apenas espantada, atracou-se com o marido, gritando:
— Não, ele não!
Agarrado pela mulher, quis se desprender, num repelão selvagem. Mas ela o imobilizou, com o grito:
— Ele não foi o único! Há outros!


A DAMA DO LOTAÇÃO


Sem excitação, numa calma intensa, foi contando. Um mês depois do casamento, todas as tardes, saia de casa, apanhava o primeiro lotação que passasse. Sentava-se num banco, ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio ou bonito; e uma vez - foi até interessante - coincidiu que seu companheiro fosse um mecânico, de macacão azul, que saltaria pouco adiante. O marido, prostrado na cadeira, a cabeça entre as mãos, fez a pergunta pânica:
— Um mecânico?
Solange, na sua maneira objetiva e casta, confirmou:
— Sim.
Mecânico e desconhecido: duas esquinas depois, já cutucara o rapaz: "Eu desço contigo". O pobre-diabo tivera medo dessa desconhecida linda e granfa. Saltaram juntos: e esta aventura inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas outras. No fim de certo tempo, já os motoristas dos lotações a identificavam à distância; e houve um que fingiu um enguiço, para acompanhá-la. Mas esses anônimos, que passavam sem deixar vestígios, amarguravam menos o marido. Ele se enfurecia, na cadeira, com os conhecidos. Além do Assunção, quem mais?
Começou a relação de nomes: fulano, sicrano, beltrano... Carlinhos berrou: "Basta! Chega!". Em voz alta, fez o exagero melancólico:
— A metade do Rio de Janeiro, sim senhor!
O furor extinguira-se nele. Se fosse um único, se fosse apenas o Assunção, mas eram tantos! Afinal, não poderia sair, pela cidade, caçando os amantes. Ela explicou ainda que, todos os dias, quase com hora marcada, precisava escapar de casa, embarcar no primeiro lotação. O marido a olhava, pasmo de a ver linda, intacta, imaculada. Como e possível que certos sentimentos e atos não exalem mau cheiro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava: "Não sou culpada! Não tenho culpa!". E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se entregava e não ela mesma. Súbito, o marido passa-lhe a mão pelos quadris: — "Sem calça! Deu agora para andar sem calça, sua égua!". Empurrou-a com um palavrão; passou pela mulher a caminho do quarto; parou, na porta, para dizer:
— Morri para o mundo.


O DEFUNTO


Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata, sapatos. Uniu bem os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim ficou. Pouco depois, a mulher surgiu na porta. Durante alguns momentos esteve imóvel e muda, numa contemplação maravilhada. Acabou murmurando:
— O jantar está na mesa.
Ele, sem se mexer, respondeu:
— Pela ultima vez: morri. Estou morto.
A outra não insistiu. Deixou o quarto, foi dizer à empregada que tirasse a mesa e que não faziam mais as refeições em casa. Em seguida, voltou para o quarto e lá ficou. Apanhou um rosário, sentou-se perto da cama: aceitava a morte do marido como tal; e foi como viúva que rezou. Depois do que ela própria fazia nos lotações, nada mais a espantava. Passou a noite fazendo quarto. No dia seguinte, a mesma cena. E só saiu, à tarde, para sua escapada delirante, de lotação. Regressou horas depois. Retomou o rosário, sentou-se e continuou o velório do marido vivo.
Foto: Sonia Braga no filme A dama do lotação

sábado, 14 de fevereiro de 2009

AMOR VAMPIRO



Do alto do campanário uma sinistra silhueta observa o vai e vem dos incautos transeuntes. Seus olhos acostumados ao negror da noite distinguem as particularidades inerentes a cada um. Seu faro aguçado revela os odores que emanam identificando suas essências e seus matizes.
Não lhe importa a origem daqueles que perambulam pela noite, só lhe interessa sondar as possibilidades que terá para saciar sua sede. Seu âmago reserva forças que serão suas armas no momento de enfrentar aquele que sentirá suas garras.
Por instantes, ele demora-se mais sobre a silhueta de um homem que corre descontrolado. Logo a seguir, dois outros surgem correndo em seu encalço. Os humanos são pródigos em caçar a própria espécie.
Acompanhando a carreira do infeliz, localiza o destino que parece oferecer a segurança que ele persegue. Um sorriso amargo desenha-se em seu rosto. O fugitivo não tem escapatória.


Erguendo-se com suavidade, distende a capa que lhe cobre o corpo e sem hesitação, lança-se em silencioso vôo. No lugar do homem solitário, um animal híbrido se mostra à sombra da noite sem lua. Seu objetivo foi traçado e agora já não há como retroceder.
Em poucos minutos alcança o abrigo que o fugitivo visava. Por uma abertura, entra e se oculta no meio dos muitos objetos que se espalham pelo local. Seus sentidos estão aguçados. Sua sobrevivência depende do quanto poderá manter-se alerta.
O abrir e fechar estrondoso da porta avisa-lhe da chegada de sua vítima. Tranqüilamente aguarda que o frenético homem se acalme. É necessário esperar que a pulsação volte a níveis satisfatórios. O sangue agitado pode resultar em problemas que não estava disposto a enfrentar.



********************



A rapidez do homem fez seus perseguidores perderem seu rastro. Enquanto ele se acalmava no aconchego do prédio, os dois que o seguiam continuam correndo em seu encalço. Já não estão mais atrás de um ladrão ou bandido, perseguem um fantasma.
Uma hora é tempo suficiente para que a agitação ceda lugar à calmaria. Sentindo a respiração do homem mais pausada, o ser híbrido abandona as sombras e se deixa ver pelo desavisado sujeito.


-- Quem é?
-- Melhor que não saiba.
-- O que quer?
-- Seu sangue.
-- Está de brincadeira?
-- Não.
-- Vá para o inferno!
-- Eu vim de lá!


O diálogo morreu ali. Antes que o homem pudesse esboçar a menor reação, mãos potentes o dominaram e dentes frios cortaram sua carne na região do pescoço. Lentamente o sangue foi sendo sorvido. Os olhos esbugalhados do homem certificavam seu pavor diante da morte.
Mais uma noite, mais uma vítima em suas costas. Tão logo a última gota havia sido ingerida, ele deixou o corpo inanimado cair ao solo. Sua sede estava saciada. Um pequeno filete vermelho e alguns pequenos círculos vermelhos eram as únicas evidências do ato que acabara de praticar.



Tão silenciosamente como chegara, ele partiu. Assumindo novamente a forma do animal, ele sobrevoou as ruas ainda tomadas por inúmeras pessoas. Sem se ocupar com quaisquer detalhes, seguiu rumo ao campanário. Ali, no alto da capela local, ele havia estabelecido seu esconderijo. Ali ele podia esquecer a culpa que pesava sobre sua consciência e assumir a identidade que o protegia durante o dia.
Quando os sinos badalaram anunciando a missa matinal, o sol ainda se mostrava preguiçosamente entre uma e outra nuvem. O domingo era um dia especial para os miseráveis que se aglomeravam diante da igreja. Neste dia, os padres distribuíam uma substanciosa refeição aos necessitados.


Misturado aos padres, o misterioso ser híbrido agia como se fosse um mero servo da igreja. Seus pensamentos vagavam por paragens longínquas, mas suas mãos moviam-se com presteza e nenhum dos outros padres conseguia perceber o estado anímico que o dominava.
Ter cruzado o caminho do recém sagrado padre, há cinco anos, foi o melhor que lhe havia acontecido nos últimos anos. Sentindo a dificuldade do jovem em assumir o fardo que a vida monástica representava, aliviou-o da responsabilidade de ter de se confrontar com suas limitações. O fato de ter lhe furtado a vida era apenas uma conseqüência de sua condição de morto vivo.


A moleza do sol em se apresentar propiciava o soprar de um vento gelado e insistente. O hálito esfumaçado testemunhava a baixa temperatura ao mesmo tempo em que mostrava a precariedade daqueles que procuravam pelo amparo da igreja.
Enquanto servia o alimento, o híbrido não se ocupava com as dificuldades que aqueles miseráveis poderiam ter. Sua atitude era vazia e distante. Seus olhos pareciam mortos. Mas aquela aparente indiferença ruiu ao cruzar com o olhar indefeso de uma das moças que se aglomeravam a sua frente.
De repente, tudo se apagou de sua frente. Apenas ele e a moça faziam parte do momento. Seus olhos buscavam-se e se encontravam com a certeza de que seus caminhos eram um só. Seus corações gritavam um pelo outro. As vibrações transbordavam de seus peitos e se emaranhavam num bailado de anseios e paixão. Mirando seus olhos com mais atenção, pareceu-lhe que eles sussurravam em segredo:


-- Eu sei quem você é!
-- Padre Xavier.


O primeiro apelo não recebeu resposta. Os sentidos do padre estavam tomados pela presença da jovem. Sua mente não registrava nada mais além da maviosa figura que tão singelamente se apresentara diante de seus olhos.


-- Padre Xavier!


Desta vez não teve como não atender ao chamado. A voz segura do superior foi acompanhada por um firme puxão nos braços. Como se estivesse acabando de despertar de um sonho, Xavier se voltou na direção do colega.


-- Sim?
-- Tem que se concentrar nas suas tarefas. As pessoas estão famintas.
-- Ah, é claro!




Xavier! Não tinha como ele habituar-se a um nome tão insignificante. Por que não acabar com aquela farsa e dizer que seu verdadeiro nome era Stanislaw? Por que não esquecer toda aquela hipocrisia e se mostrar como realmente era? Sim, por que?
Talvez porque fosse um monstro. Ou quem sabe porque seria taxado de criminoso. Sim! Poderia inventar mil e uma designações distintas para identificá-lo, mas a única que retratava sua verdadeira essência era a de assassino.


-- Padre Xavier!


Outra vez seu superior o intimava a prestar atenção a tarefa que executava. A saudade de casa o estava incomodando demais naquele dia. Sem entender o motivo de tanta melancolia, esforçou-se para concentrar sua atenção no atendimento aos necessitados.
Ao terminar de servir os alimentos, procurou pela moça que o encantara. Não precisou de muito tempo para localizá-la junto a um grupo de meia dúzia de pessoas que se encontravam próximas ao portão do edifício vizinho a igreja. Ao vê-la, percebeu que ela também o procurava.



No instante em que seus olhos se cruzaram novamente, sua mente abandonou o corpo e o momento presente e refugiou-se nas brumas do tempo. Subitamente a paisagem modificou-se e já não estava mais naquela cidade tão desfigurada. Estava em sua velha cidade, não neste caos que ela se tornara.
-- Stan! Ouviu chamarem-no.
Voltando-se, encontrou um jovem que parecia conhecê-lo muito bem. Mal havia se virado, foi cingido pelos braços fortes do rapaz.
-- Por que não avisou que viria?
-- Como?


Stanislaw demorou a entender o que se passava. Aquela cena havia acontecido há muito tempo. Os anos passaram com velocidade espantosa desde aquela época. Como voltara para lá?


-- Papai vai ficar muito contente com sua vinda.
-- Espero que não esteja atrapalhando.
-- De modo algum. Mamãe não vê a hora de poder lhe mimar.
-- Parece que faz cem anos que deixei este lugar.
-- Pois tem alguém que sente o mesmo.
-- Heim?
-- Ora, não se faça de desentendido. Todos nós sabemos que minha irmã é apaixonada por você.
-- Blenda? Como ela está?
-- Morrendo de saudades.
-- Deve ter se transformado em uma moça muito formosa.
-- Melhor que veja com seus olhos.
-- Tem algo que devo contar.
-- Nada que possa esperar. Vamos, se não sairmos já, teremos de enfrentar a escuridão.
-- Não sabia que tinha medo do escuro.
-- Muitos fatos estranhos têm ocorrido nos últimos dias. Sabe que não sou homem de me deixar dominar pelo medo, mas tem algo de assustador neste local.



Assustador! Sim, os últimos acontecimentos haviam transformado a pacata cidade em um caos. Corpos e mais corpos eram encontrados noite após noite. A polícia não tinha nenhuma pista do que poderia estar causando as mortes. A população estava amedrontada.
Na pequena propriedade para onde Stanislaw seguiu a situação não era diversa. O medo imperava toldando a animação tão característica dos pacatos cidadãos. Ninguém ousava perambular durante a noite. As casas mantinham-se de portas cerradas.


-- Por que a reclusão?
-- Todos estão com medo.
-- Medo de que?
-- Há tempos que vem ocorrendo crimes misteriosos. Sempre que amanhece, um corpo é encontrado.
-- Mas e quanto à polícia?
-- Está tão perdida quanto qualquer um de nós.
-- Desde quando começaram os ataques?
-- Há cerca de três anos.
-- Impossível! Se todas as noites há uma vítima, a cidade já deveria estar deserta.
-- Acontece que os ataques só são perpetrados em determinadas épocas do ano. No mais, tudo volta à tranqüilidade habitual.
-- Muito estranho.
-- De acordo com os ciclos, devemos ter mais cinco noites de terror.
-- Pois vou dar um jeito de colocar um fim a estes ataques.
-- Como?
-- Aprendi muito nestes anos passados em Londres. Sei o que pode estar provocando estas mortes.
-- O que?
-- Um ou mais vampiros.
-- O que? Está de gozação?
-- Não acredita neles?
-- Bem, não é que esteja duvidando de sua sanidade, mas isto não passa de lenda que os adultos contam para as crianças.
-- Também acreditava nisto, mas as experiências pelas quais passei, abriram minha mente para acontecimentos que nossos conhecimentos não são capazes de explicar.
-- Digamos que acredite em suas palavras, como espera agir?
-- Com as habilidades que adquiri.
-- Não vai dizer que se tornou um especialista em vampiros.
-- Não. Mas estudei muito algumas ocorrências estranhas.
-- Londres deve ser uma cidade bem equipada e preparada para uma incursão mais decidida, mas aqui?
-- Deixe comigo.




As cordialidades foram frias e rápidas. O adiantado das horas impediu que os laços amistosos fossem estendidos. Sem muita cerimônia, Stanislaw foi acomodado em um dos aposentos e todos se recolheram. Naquela noite ele não obraria nada, mas a partir do dia seguinte, teria muito que lhe ocupar.
Novamente os sinos o tiraram de suas lembranças. Procurou pelo grupo ao qual a moça se juntara, mas eles haviam partido.


-- O que se passa com você, Xavier? Perguntou-lhe um dos padres.
-- Nada.
-- Anda um pouco aéreo.
-- Um pouco de estafa, nada mais.
-- Talvez devesse se afastar das tarefas cotidianas. Dedicar-se mais as orações.
-- Ainda posso contribuir com as tarefas.
-- Mas poderá contribuir muito mais se estiver mais descansado.
-- Não se preocupe. Amanhã estarei melhor.


Como Stanislaw desejou que a noite não chegasse. Seu coração estava fustigado por emoções que lhe eram desconhecidas. Já nem se lembrava mais da última vez que se sentira tão diferente. Ah, sim. Foi na mesma época em que se hospedou na propriedade de seu amigo.
Três noites e nada. Stanislaw não conseguia estabelecer o padrão de ataque do possível vampiro que estava atacando os moradores. Sua percepção estava sendo atrapalhada pelo perfume estonteante que sua antiga amiga de infância usava. A amizade infantil havia se transformado em uma atração muito forte.


-- Por que perde seu tempo nestas vigílias sem nexo?
-- Porque sei que posso deter o responsável pelas mortes.
-- Isto é assunto da polícia.
-- Não. É assunto de qualquer cidadão que se sinta ameaçado. Este assassino não pode escapar impune.
-- Mas e se ele o encontrar primeiro?
-- Estarei pronto para ele.
-- Sinto tanta apreensão quando sai à noite.
-- Não deve se preocupar comigo. Sei como me defender deste famigerado.




A última noite chegou sem alarde. De cima da cúpula da igreja, Stanislaw vigiava a rua principal da pequena cidade. Era uma noite fria e uma fina garoa cobria a região. Se não bastasse o medo, o tempo seria fator suficiente para manter todos em suas casas, mas ainda assim sempre tinha um que olvidava o bom senso.
A monotonia noturna começou a entorpecer-lhe os sentidos. Seus olhos fechavam-se insistentemente. Por varias vezes bocejou exalando o calor que mantinha seu interior aquecido. Em uma das cochiladas foi surpreendido pela presença de um ser esguio e sinistro.


-- Quem é você?
-- O que importa quem seja? Não estará vivo para contar a ninguém.
-- Isto é o que pensa.
-- Acredita mesmo que será capaz de me derrotar? Sei que tem me caçado estas noites. Não entendo o que o motiva, mas saiba que reservei esta noite para você.
-- Escolheu a vítima errada, seu animal grotesco.
-- Animal grotesco! Rapaz esta foi original. Já me chamaram de muitos nomes, mas animal grotesco...
-- Não estará tão confiante quando eu acabar com você.
-- O que pretende? Mostrar-me um crucifixo? Espetar uma estaca de madeira em meu coração? Ah, talvez queira me enfeitar com um colar de alhos.
-- Sei muito bem como vencê-lo.
-- O que aprendeu com seus padres não reflete a verdade sobre os iguais a mim. Estes objetos obsoletos não servirão para nada.
-- Talvez, mas isto aqui servirá.
Sem dar tempo para que o agressor se desviasse, Stanislaw atirou o conteúdo de um pequeno frasco bem no rosto do espantado ser.
-- O que é isto? Está tentando me matar com água?
-- Não se trata simplesmente de água. Espere um pouco.
Não demorou para os efeitos do liquido começarem a se mostrar. Do rosto do agressor começou a elevarem-se pequenas colunas de fumaça. Num assomo de dor, ele contorceu-se e esbravejou:
-- Maldito! O que atirou em mim?
-- Ácido! Mesmo vocês não são imunes à corrosão causada por ele.
-- Arrependerá de tal atrevimento.




Mesmo sentindo o ácido consumir a carne de seu rosto, o agressor avançou e se atracou com Stanislaw. A luta foi ferrenha e se prolongou por minutos que mais pareceram uma eternidade. Apesar de ferido, a força do agressor era descomunal. Stanislaw sentiu quando os dentes frios vazaram sua carne. Reunindo todas suas forças, forçou o corpo do agressor para o lado e fugiu de seu abraço.
-- Agora sim posso lhe dar minha última dádiva.
A estaca que segurava não era de madeira, mas sim de metal. Quando ela penetrou o peito do agressor, Stanislaw acionou um dispositivo existente em sua base e injetou o mesmo líquido bem no coração do ser.


-- Morra, maldito!
-- Ah! Isto arde!
-- Esta é a paga que merece seu animal!


O sofrimento do ser foi longo. Antes que o sol se mostrasse ele ainda estava se contorcendo. Somente quando o primeiro raio dourado atingiu o solo local, seu peito exalou o último suspiro. Intrigado, Stanislaw observou um enigmático sorriso naquilo que sobrou do rosto contorcido do ser.
Enfraquecido pelos ferimentos que recebera, ele não teve forças para deixar o lugar. Permaneceu ali até que um passante o viu. Assim que divisou a cena, partiu em frenética correria. Sabia que uma nova vítima estava para ser identificada e precisava informar a polícia.
Quando os primeiros policiais apareceram, Stanislaw estava em seu limite. Sua mente ameaçava pagar-se a qualquer instante. Somente sua determinação manteve-o consciente.


-- O que se passou aqui?
-- Eis aí o responsável pelas mortes. Pelo menos aquilo que sobrou dele.
-- Como sabe que era ele?
-- Ele havia me escolhido para sua última vítima do ano. Só não contava que estivesse preparado para ele.
-- Quem ele era, afinal?
-- Isto vocês terão que descobrir. A minha parte já está terminada.
A cidade ainda é a mesma. As mudanças que se processaram ao longo do tempo foram as mesmas que atingiram outras localidades semelhantes. O progresso trouxe implementos que resultaram na expansão do círculo urbano. Nas atuais condições, Stanislaw tinha meios mais seguros de esconder-se.




Os olhos frios expressaram toda tristeza que dominava a alma angustiada que vivia sem saber o que era ter um lar. Sua vitória havia se transformado em avassaladora derrota tão logo sentiu os primeiros efeitos dos ferimentos que recebera.
Quase dois meses depois de haver vencido o estranho ser, começou a ter pesadelos horríveis onde seu âmago era dominado por uma ânsia infinita. Seus órgãos queimavam como se tomados por chamas ardentes. Sua garganta tornara-se seca e não havia água que a tornasse menos árida.
Os alimentos começaram a perder o sabor e os líquidos assumiam uma consistência estranha ao descer pela garganta. O único sabor que ainda era registrado era o do vinho e, mesmo assim, não lembrava o antigo gosto.
Tudo se revelou em uma noite escura quando, pensando estar vivendo mais um de seus pesadelos, descobriu-se atacando um indefeso morador da cidade. Ficou transtornado ao notar o sangue que escorria por seus lábios. O terror o dominou ao observar o corpo sem vida que jazia a seus pés. Em que espécie de besta se transformara?




Sem saber o que fazer, saiu errando pelos locais mais desconhecidos possíveis. Nem mesmo se lembrou ou desejou despedir-se dos amigos. Queria apenas era estar o mais longe de tudo e de todos. Sua fuga o levou para lugares ermos onde sua sede o atormentava quase a exaustão. Sua vida fora tragada pelas labaredas provenientes do inferno.
Seis anos após ter partido, voltou ao cantão onde tudo começara. Não visitou o amigo nem se deixou ver pelos conhecidos. Agora caminhava oculto em uma roupa negra encimada por uma capa adornada por um capuz que lhe ocultava a face. Era um ser das trevas e como tal tinha que se portar.
Já estava habituado a angústia que lhe consumia quando um fato o fez ver que nem toda dor do mundo poderia ser comparada a danação que o tocava. Num domingo qualquer, ficou observando as pessoas dirigirem-se a igreja local. A mesma onde enfrentara o sinistro que lhe legara a maldição eterna.
Nenhum rosto chamava sua atenção até que seus olhos pousaram na encantadora silhueta de Blenda. A jovem tornara-se uma mulher atraente e ao mesmo tempo conservara os traços angelicais da menina que tanto o apaixonara. Seu coração bateu de modo inconstante.



A vontade de se aproximar e declarar seu amor travava ao recordar-se de sua condição de ser danado. A loucura apossou-se de sua alma e já não era mais capaz de atinar em nada. Aquelas foram as noites mais terríveis que a pequena cidade enfrentou. As vítimas foram se somando até atingirem número muito maior que o seu antecessor fora capaz de amealhar. Sua sanha extrapolou todo limite que a civilidade criara.
Sua aniquilação chegou em uma noite sem brilho. Estava escondido em um telhado de uma das casas quando ouviu os passos de sua próxima vítima. Aguçou os sentidos e se preparou para o ataque. Como sempre, tudo se passou em fração de segundos. O abraço gélido e a dentada desprovida de qualquer emoção pessoal, o sangue sendo sugado até a última gota e fim.
Estava limpando os lábios quando uma réstia de luz iluminou a tez da desfalecida vítima. Um grito de horror deixou suas entranhas com violência. A vítima tão impessoal quanto sua sede de sangue, se mostrava mais pessoal que qualquer outra pessoa poderia se fazer notar. A seus pés, o corpo inanimado de sua antiga amiga. Blenda não teve tempo nem mesmo de expressar um único sussurro de pavor.
Enojado e odiando a si próprio, abandonou o local sem saber por onde seguia. Só deteve seus passos ao se encontrar próximo ao porto de uma cidade qualquer. Não quis saber o nome, avançou pelas ruas e foi desafiando todos que cruzavam seu caminho. Perdeu a conta dos muitos que enfrentou, nenhum lhe fez frente.



Ao chegar ao píer, deparou-se com um bando musculoso e encarou-os com cólera. Pelo menos desta vez foi surrado até não mais poder manter-se me pé. Ferido e extenuado, foi abandonado no porão do navio. Ali, na escuridão e na solidão, coberto de hematomas, chegou a pensar que conheceria o fim.
Porém quando sua sede voltou a se manifestar, sentiu um vigor senil a impulsioná-lo a caça. O primeiro marinheiro foi apenas a primeira de suas novas vítimas. Antes de o navio atracar em seu destino, a tripulação havia sido reduzida a um terço daquela que deixou o porto.




Acobertado pelo domínio da arte da transformação, desembarcou sem que fosse notado. Respirou o ar puro da tarde e lançou um olhar perscrutador ao redor. Que lugar seria aquele? Antes de a noite chegar, já sabia onde se encontrava, Londres.
Seu exílio durou longos cem anos. Quando finalmente decidiu voltar encetou uma peregrinação expiatória na vã tentativa de exorcizar os fantasmas que o acompanhavam. Sua jornada foi inglória, solitária e pontuada pelas novas vítimas que ia colecionando.
Estando próximo a cidade, encontrou-se com aquele que lhe cederia o nome e o status. O jovem padre não imaginou que o homem que o ouvia tão atentamente, seria o mesmo que o levaria de encontro a morte.
Desde o momento em que se descobriu uma aberração, aprendera muito sobre a espécie vil a qual se juntara. As lendas a respeito do sol, dos crucifixos, dos alhos, tudo não passava de balela. Andava tranqüilamente sob o sol mais incremente; freqüentava igrejas e outros templos religiosos sem a menor hesitação; enfim, levava uma existência normal sob o aspecto da rotina.



Outra lenda que havia sido difundida referia-se a imortalidade dos degenerados. Longe de serem imortais, poderiam perder a vida através de acontecimentos corriqueiros. Uma queda mais vertiginosa, um ferimento mais profundo que fizesse o sangue se esvair todo, a inanição resultante da falta de sangue, enfim, uma enormidade de fatores poderiam ceifar sua existência.
O lado mais sombrio de sua existência resumia-se ao fato de jamais poder constituir uma família. Não por ser desprovido de condições que permitissem gerar uma prole, mas porque caso se fixasse em determinada região e ocupasse uma posição social junto aos habitantes, tornar-se-ia vulnerável e colocaria em risco a sobrevivência daqueles a quem se unira.
Decididamente um vampiro estava condenado a uma existência solitária. Sua jornada não podia ser compartilhada. Mesmo quando se encontrara com outros, o relacionamento se mostrara conflituoso. Um vampiro já era suficiente para colocar em risco a população de uma cidade pequena, o que dizer de dois ou mais?
Outra noite ganhava espaço na senda do tempo. Stanislaw sentia-se cansado de sua existência maldita. Sua mente atormentada refletia o estado doentio de sua alma. Ele não conseguia mais manter-se altivo e desejoso de prolongar sua vida. Os anos começavam a lhe pesar em demasia.




*************


A sirene de um carro de emergências o tirou de suas divagações. A noite estava em seu apogeu e ele precisava executar sua função. Os olhos prepararam-se para esquadrinhar as ruas a procura pela vítima da vez. Os instintos aguçados o deixavam com aspecto animalesco. Seus olhos perdiam o brilho natural e um vermelho vivo tomava toda sua órbita. A caçada estava começando.
Os incautos que se aventuravam pela noite não imaginavam o risco que corriam. Suas atenções não iam além dos problemas corriqueiros ou das ambições e desejos mundanos. Se pudessem sentir a angústia que dominava a alma atormentada do vampiro, perderiam a razão.



O tédio que dominava seu âmago era tão abrangente que seu desejo vacilava entre a ansiedade de colocar um fim em tudo e a necessidade de se manter vivo. Vivo? Como podia considerar-se vivo? Não era, sua existência, um quase nada? Um estágio entre a vida e a morte? Um vazio que o sufocava e martirizava sua alma condenada a danação eterna?
Decididamente aquela era uma noite nada auspiciosa. Sabia que qualquer vacilo podia denunciar sua existência. Enquanto ignorassem sua presença e especulassem a respeito da existência de um serial killer, estaria protegido.
Sem ânimo para se decidir sobre este ou aquele, aguardou que alguém se aproximasse. Sua espera arrastou-se por longos minutos. Não que fossem poucos os transeuntes, mas estavam distantes do local onde se instalara. Não queria expor-se mais que o necessário.



Quando já estava enfastiado e desejoso de abandonar seu posto, viu a silhueta delicada de uma moça mover-se na direção da igreja. Sentiu-se recompensado por espera tão prolongada, ao menos a vítima seria uma fêmea. Se não houvesse opção, não abria mão de quem quer que fosse, mas se sorte lhe mandava uma moça, tanto melhor.
Aprumou-se e esperou pelo momento mais adequado. Sua verve de vampiro emanava vibrações intensas e sua sede de sangue fazia seu faro degustar o precioso líquido antes mesmo que sua boca o sorvesse. Os instantes que antecediam o ataque eram especiais. Sua adrenalina atingia picos inimagináveis para os humanos comuns.
Assim que a moça estava a uma distância segura, desfraldou a capa negra que lhe cobria o corpo e saltou sobre a distraída vítima. O fugaz vôo, que o levaria até o pescoço da delicada moça, foi interrompido em sua parte final. À medida que se aproximou da jovem, foi reconhecendo-a. O choque que o dominou foi fulminante. Sem ter como reagir, estatelou-se no chão.



Sem demonstrar o menor espanto, a jovem esperou que ele se levantasse e ajeitasse as vestes. Olhou-o com afeto e, aproximando-se de seu ouvido, sussurrou-lhe:
-- Eu sei quem você é!
-- Quem é você? Reagiu afastando-a.
-- Já não reconhece mais uma velha amiga?
-- Impossível! Olhando mais detalhadamente, até que você a lembra um pouco, mas é impossível, ela está morta!
-- Não! Eu estou aqui!
-- Como?
-- Naquela noite, quando você me atacou, deixou-me desfalecida, mas não morta. Passei muito tempo em um estado de profundo coma, mas superei este empecilho.
-- Mas eu vi...
-- O que viu foi meu corpo desfalecido. Aquilo que julgou ter visto foi minha morte.
-- Não era para ter sido você. Eu jamais a atacaria.
-- Eu sei. Depois de quase dois anos, quando voltei a mim, a primeira pergunta que fiz foi onde você estava. Ninguém mais o vira depois daquela noite. Alguns, bem poucos posso afirmar, suspeitavam que você fosse o responsável pelos ataques. A maioria o teve na conta de um covarde que fugiu para preserva a vida.
-- Antes o fosse. Nunca mais pude encarar-me. A condenação pelos meus atos transformou-se em uma carícia reconfortante quando comparada ao martírio que se instalou em meu peito após aquela noite fatídica.
-- Nós nos amávamos!
-- Não!
-- Não?
-- Não! Eu ainda a amo!
-- Esta certeza foi a única luz que me guiou nestes anos todos. Sempre que estava prestes a desistir, voltava a sentir o amor fazer meu coração disparar.
-- Mas e quanto as conseqüências?
-- No começo foi muito difícil. Até que eu compreendesse a extensão de tudo, sofri muito. Os médicos não conseguiam um diagnóstico preciso sobre o mal que me acometera. Se hoje, com todos recursos eles ainda não são capazes, imagina naqueles tempos.
-- Como conseguiu superar as dificuldades?
-- Estando internada e sob tratamento, recebia muita transfusão. Assim, não sentia necessidade de conseguir sustento a minha sede. Quanto as mudanças, bem elas foram mais complicadas.
-- Sua família não percebeu nada?
-- Minha família estava muito empenhada em controlar a situação política do lugar. Apenas minha mãe se manteve ao meu lado. Até hoje acredito que ela não percebeu nada.
-- Quando descobriu a verdade?
-- Uns vinte anos depois do fato. Desde que deixei o hospital, era tratada como louca.


As pessoas se aproximavam e sentiam pena de minha condição ensandecida. Não compreendiam a amargura que se apossara de minha alma. Não conseguiam assimilar a imensa carga que fora impingida a mim.
-- Eu sinto muito! Durante estes anos tenho me culpado por sua morte, mas agora compreendo que minha culpa é muito maior.
-- Não o culpo por nada.
-- Mas veja no que a transformei!
-- Naquela noite, quando me atacou, tinha saído para encontrá-lo. Sabia exatamente onde estaria.
-- Como?
-- Durante semanas o segui. Ao testemunhar um de seus ataques, pensei que ia morrer. O homem que conquistara meu coração era um monstro. O choque foi muito forte. Desesperei-me!
-- Eu posso imaginar.
-- Passei três dias trancada em meu quarto. Não queria ver nem falar com ninguém. Minha mãe acreditou que foi naquela época que comecei a enlouquecer. De certo modo ela estava certa.
-- Por que saiu a minha procura?
-- Os três dias de isolamento serviram para me mostrar que não podia mais viver sem ter seu amor. Eu sai para me entregar a você. Queria que me transformasse em um ser igual.
-- Mas... Mas...
-- Eu sei. Eu o havia visto como um monstro. Mas como viver longe do homem a quem amava?
-- Eu me recusei a revelar-lhe meu amor por não desejar transformá-la nisto que sou.
-- Para poder viver meu amor, eu morreria por você.
-- Estes anos devem ter sido muito difíceis.
-- Somente porque não estava ao seu lado. Apesar de ter de caçar toda vez que minha sede se manifestava, nunca senti remorso pelas vítimas que fiz. Sempre escolhi o lixo da sociedade.
-- Isto não alivia muito as conseqüências de nossa atitude.
-- Quando a consciência pesava um pouco, pensava nos calhordas que havia impedido de continuarem a praticar suas maldades.
-- Uma vingadora?
-- Por que não? As pessoas, que se tornaram minhas vítimas, julgavam-se acima da lei. Acreditavam que nada as atingiriam. Eram arrogantes e não tinham escrúpulos.
-- Não tive tanta sobriedade assim. Saber que havia cometido o mais hediondo dos crimes me tornou amargo demais para pesar as atitudes alheias.
-- Agora tudo é passado. Estamos aqui.
-- Vagou todos esses anos atrás de mim?
-- Sim.
-- Nunca fui além de Londres.
-- Mas eu não sabia. Talvez em Londres a situação fosse menos arriscada, mas aqui os governantes desencadearam uma verdadeira cala as bruxas.
-- Bruxas?
-- Modo de dizer. Os reis e os bispos se sentiram ameaçados pelas correntes filosóficas que surgiam a todo instante. Usando do poder que tinham e da desculpa de estarem combatendo o demônio e seus seguidores, prenderam, torturaram e assassinaram muitos inocentes.
-- A inquisição.
-- Sim.
-- Mesmo em Londres ficamos sabendo das atitudes arbitrarias da igreja, mas não sabíamos que ela se ocupava dos seres da noite.
-- Este aspecto era apenas uma desculpa. De todos que morreram nas fogueiras e nos calabouços, nenhum tinha, sob seu espírito, o peso da maldição que nos toca.
-- Pobres coitados.
-- Também cheguei a pensar assim. Ao menos durante um tempo.
-- Por que mudou seu modo de pensar?
-- Por acaso acha que aqueles que pereceram eram melhores que seus algozes?
-- Não eram?
-- De modo algum. Muitos deles eram tão tiranos quanto os reis que os torturavam.
-- Também fez vítimas entre eles?
-- Muitas.
-- Como jamais fiquei sabendo sobre tais ataques?
-- Medo!
-- Medo?
-- Sim. Por medo da repercussão dos casos, todos se calavam. Creditavam as mortes a epidemias ou algo que pudesse ser explicado de forma racional.
-- Mas alguém deve ter suspeitado da atitude dos governantes e bispos.
-- Sim. Muitos não davam o menor crédito as explicações das autoridades. Foi nesta época que surgiram as mentiras a nosso respeito.
-- Mentiras?
-- É. Essas crendices de que não podemos sair de dia, não suportamos a exposição a objetos sagrados, não podemos freqüentar igrejas, e todas as outras.
-- Mais uma jogada dos poderosos.
-- Sempre é assim. O tempo avança e as modernidades surgem, mas o status quo permanece o mesmo.
-- Talvez eu não mereça o empenho que teve para me encontrar.
-- Por que?
-- Ao que vejo, você se adaptou ao mundo hodierno. Adaptou-se até mesmo a sua nova condição. Quanto a mim, bem, eu tenho desperdiçado meu tempo com lamentações e angústias que me machucam mais que posso suportar.
-- Você reagiu de acordo com o conhecimento que possuía. Não deve exigir mais do que é capaz de dar.
-- Mas você...
-- Eu aprendi a conviver com minha escolha. Mesmo estando afastada de você, nunca perdi a esperança de encontrá-lo. Já você sempre acreditou que estivesse morta e, o que é pior, que fosse o responsável por isto.
-- Onde está morando?
-- Estou trabalhando como voluntária no hospital da igreja. Como não tenho ninguém, eles permitem que eu ocupe um quarto numa das alas desocupadas.
-- Voluntária! O que faz?
-- Sou enfermeira. Utilizei o tempo que tenho a meu dispor para aprender muito. Já cursei varias faculdades.
-- Como consegue? Sempre que acontece uma mudança mais brusca no comando do país, tenho que me esconder. Os novos senhores exigem documentos, atestados de tudo quanto é assunto, enfim, um monte de papel que não possuo.
-- Neste assunto, contei com a ajuda de um amigo muito especial.
-- Um humano comum?
-- Sim. Mais incrível ainda se considerar que ele era um padre.
-- O que?
-- Depois que segunda guerra terminou, perambulei por cidades totalmente destruídas. Naquela época estava vivendo do lado errado do mundo. Era professora em um vilarejo no interior da Alemanha. Como todos os perdedores, fui tratada com desprezo e, devido a posição que ocupava, levada a um campo de concentração.
-- Malditos!
-- Não, não se revolte. Foi neste campo que me encontrei com meu salvador. Ele prestava serviços voluntários no campo. Mesmo sofrendo hostilizações dos prisioneiros, jamais esmoreceu em suas tarefas. Sempre tinha uma palavra de consolo para dar.
-- Como ele a salvou?
-- No inverno o campo foi dominado por uma epidemia que ceifou muitas vidas. O padre ficou enfermo e como todos se esquivassem de auxiliá-lo, me ofereci para cuidar de seus ferimentos.
-- Mesmo nós não estamos livres do contagio das doenças.
-- Eu sei, mas a doença que atacou os prisioneiros não era mortal para nós. Sabia que corria o risco de contrair a doença, mas a certeza de que não morreria me fez assumir a tarefa que o padre desempenhava.
-- Por que?
-- Eu tinha uma condição que me protegia da morte. Podia cuidar de todos sem ser ameaçada pelo fim, mas ele? Ele agia sem se importar se morreria ou não. Sua dedicação me deixou envergonhada e passei a ajudá-lo nas tarefas.
-- Então?
-- Então veio o fim de tudo. O campo foi fechado. Os prisioneiros libertados e cada um seguiu seu destino. O padre vendo que não tinha para onde ir, me convidou para segui-lo. Confiei em sua conduta e contei-lhe a verdade sobre mim.
-- Contou-lhe quem era?
-- Sim.
-- E ele?
-- Ele não acreditou de imediato. Achou que a doença tivesse afetado minhas faculdades ou algo parecido. Tive que mostrar-lhe como sou para que acreditasse.
-- Transformou-se diante de um humano comum?
-- Sim.
-- Como ele reagiu?
-- Desmaiou. Para conseguir convencê-lo, fui obrigada a me transformar umas oito vezes. Quando não tinha mais dúvidas, ele me abraçou, me benzeu e simplesmente me disse:
“-- Não sei o propósito de sua existência, mas seja qual for, não sou eu quem irá contestá-la ou denunciá-la. Se a providência permitiu que fosse tocada por esta... esta... esta provação, é porque tem um propósito especial”.
-- Nada mais?
-- Nada. Nunca mais tocamos no assunto. Enquanto ele viveu, estive sob sua proteção. Ao se encontrar próximo da hora da morte, ele tomou as providências para que eu pudesse sobreviver no caótico mundo dos mortais.
-- Por isto é ligada a igreja?
-- Mais ou menos. Depois que meu protetor se foi, desvinculei-me da igreja. Não confiava nos superiores e muito menos nas freiras que compunham o quadro de enfermeiras do hospital. Foi neste tempo que estudei tudo que sei. Como não precisava de muito, e já que não comungava os mesmos preceitos da sociedade, tinha fácil transito por todos os segmentos. Travei contato com as mais variadas correntes. Desde autoridades até criminosos.
-- Viveu mais que uma vida.
-- Neste ponto tem toda razão. Tive muitas vidas. Sempre que uma identidade que assumia atingia uma idade onde deveria apresentar as marcas do tempo, era hora de desaparecer e assumir uma outra.
-- Mas e os papéis?
-- Aprendi a falsificar meus documentos. Criar identidades fantasmas.
-- Uma especialista em fraudes?
-- Como disse, adaptei-me ao mundo dos humanos.
-- Adaptou-se muito bem, por sinal.
-- Isto o contraria?
-- Não. Mas me deixa curioso.
-- Sobre o que?
-- Como conciliou suas atividades voluntárias com a necessidade de caçar?
-- O que ainda não contei é que encontrei vários iguais a nós. Muitos tão bem adaptados a vida cotidiana quanto eu. Formamos uma espécie de comunidade.
-- Uma comunidade de vampiros?
-- Sim.
-- Onde?
-- Aqui. Em Londres, Nova Iorque, Paris, Joanesburgo, por todo o mundo.
-- Incrível!
-- É!
-- Por que voltou para cá?
-- Porque era o único local onde não o havia procurado.
-- Veio até aqui apenas para me encontrar?
-- Já disse, por você iria até o inferno.
-- Quanto a comunidade?
-- Não temos de viver na comunidade. Existem muitos que a conhecem, mas optam por continuarem solitários.
-- Não são forçados a participarem?
-- De modo algum. Não desejamos agir igual aos humanos. A comunidade existe para abrigar os mais frágeis.
-- Vampiros frágeis?
-- Qual a primeira sensação que teve ao se descobrir um vampiro?
-- Desespero! Um completo abandono de tudo. O apogeu da solidão.
-- Exatamente! Muitos não conseguem se recuperar deste estágio. Desgarrados da comunidade seriam presas fáceis.
-- Presas? Para quem?
-- Alguns cientistas já sabem sobre nossa existência. Eles nos caçam pelo mundo a fora na intenção de nos aprisionar e fazer estudos com nossos corpos e órgãos.
-- Com que finalidade?
-- Com a finalidade de descobrirem o segredo para a maior de nossas maldições.
-- A maior?
-- A eternidade.
-- Mas não somos imortais. Estamos sujeitos a morrer como qualquer humano.
-- Acontece que as lendas criadas em torno de nossa espécie, os faz acreditar que podemos viver para sempre. Daí, tentarem nos capturar para poderem descobrir o que nos torna indestrutíveis.
-- Canalhas!
-- Como vê, temos uma vasta gama de futuras vítimas. Não precisamos nos ocupar com a gente simples das cidades.
-- Não sei se quero viver nesta comunidade.
-- Não precisa viver na comunidade. Só peço que a conheça.
-- Está certo. Leve-me até lá.
-- Primeiro precisa se alimentar.
-- Está tarde. Não conseguirei nenhuma vítima hoje.
-- Não precisa.
-- Mas...
-- Confie em mim.



''Uma fina e fria lâmina penetrou seu peito. Assustado olhou-a não entendendo nada. Seu olhar seguro devolveu-lhe um pouco de tranqüilidade''.


-- Não se assuste. Isto é um concentrado de sangue. Ele o fará sentir-se tão bem como se tivesse sugado o sangue de um humano saudável.
-- Não atacam mais as pessoas?
-- Às vezes.
-- De onde vem este remédio?
-- Não se trata de um remédio. É apenas um paliativo para nossas necessidades. Ainda precisa ser melhorado. Não podemos fazer uso indiscriminado dele. Alguns não suportam mais que uma dose por mês.
-- Quanto tempo dura o efeito?
-- Não sentirá necessidade de caçar por aproximadamente cinco dias.
-- Tanto assim?
-- Ainda conseguiremos mais.
-- Quem é o responsável por este...
-- Soro. Eu o criei e um grupo de estudiosos o vem potencializando.
-- Será o fim dos vampiros.
-- Não, será o fim de uma era. Quando o soro estiver totalmente desenvolvido, não precisaremos mais agir como animais. Teremos como nos abastecer de modo civilizado.
-- Acho que não vou gostar deste mundo novo.
-- Está falando como um velho ressentido.
-- Não me...


Antes que pudesse expressar sua contrariedade pelo comentário, observou um sorriso agradável em seu rosto. Ela estava sendo irônica. Zombando de sua posição radical. Há muito que ele não sabia o que era ser zombeteiro. Sua vida havia se transformado em uma provação muito dura. Nela não havia lugar para gracejos despreocupados.
A comunidade encontrava-se estruturada de modo simples. Um líder e um conselho e mais nada. Tanto o líder quanto os conselheiros eram escolhidos pelos membros da comunidade permanecendo em seus postos por um ano.


-- Quem é o líder?
-- Rayssa.
-- O que?
-- Por que o espanto? Só pelo fato do líder ser uma mulher?
-- Bem, não esperava por algo tão moderno.
-- Rayssa provou ser merecedora da confiança que depositamos nela. Seu pai foi um dos últimos representantes da antiga geração de vampiros.
-- Como assim, antiga geração?
-- Depois de nos organizarmos, realizamos algumas pesquisas e conseguimos levantar a identidade de muitos vampiros. Localizamos todos e elaboramos uma lista de temporalidade. Os mais velhos foram chamados de antiga geração.
-- Quantos são?
-- Hoje apenas dez.
-- O que houve com os outros?
-- Desistiram de prolongar suas existências. Cansaram-se da rotina de caçar e se esconder.
-- Onde estão os que ainda insistem?
-- Espalhados pelo mundo.
-- Por acaso encontraram um conhecido por Atila?
-- Não o huno, não é?
O olhar frio estampado no semblante do amigo, mostrou que ele não estava acostumado a gracejos.
-- Foi uma brincadeira.
-- Chegaram a encontrá-lo?
-- Sim.
-- Ele ainda vive?
-- Sim.
-- Onde?
-- Por que o interesse?
-- Temos pendências a seres resolvidas.
-- Não pode atacar um igual.
-- Jamais serei igual aquele verme!
-- A comunidade não permitirá um ato de vingança e caso venha a praticá-la, será caçado por todos.
-- Não me importo. Desde que conheci aquele animal, jurei que o mandaria para o inferno. Esta tem sido minha motivação para prolongar minha existência.
-- Pensei que me amasse.
-- E a amo. Sempre a amei, mas o que poderia esperar depois de ter me tornado um amaldiçoado?
-- Mas já não está mais só. Estamos juntos.
-- Lamento, mas não posso afastar este cálice de meus lábios.
-- Compreende que isto poderá nos afastar?
-- Sei que é um preço muito alto, mas ele vai me pagar.
-- E se disser que ele está morto?
-- Diga-me onde está enterrado e então prantearei não ter sido eu seu algoz.
-- Por que tanto ódio?
-- Onde ele está?
-- Deve esquecer aquilo que passou.
-- Onde?
-- Stan, por mim!
-- Se morreu, onde fica seu túmulo.
-- Ele não está morto.
-- Onde?
-- Em Moscou.
-- Que identidade está usando?
-- Ele está muito envelhecido. Suas forças já não são mais as mesmas. Não merece que se ocupe com ele.
-- Como o reconheço?
-- Stan!
-- Lamento. Se não pode me ajudar, seguirei só.
-- Não! Eu vou com você.
-- Não. Se me acompanhar, atrairá a ira de todos. Esta batalha é só minha.
-- Seria, se não estivesse tão ligada a você.
-- Esqueça-me! Tem uma oportunidade pela frente.
-- E o que faria com ela? Como poderia seguir sabendo que você se foi?
-- Talvez não sobreviva a minha vingança.
-- Tenho certeza de que não sobreviverá.
-- Por que insiste em me acompanhar?
-- Porque eu o amo!


********


O silêncio se instalou como senhor absoluto da noite. Stanislaw sabia que sua vingança o levaria a morte. Não desejava que sua amada sofresse destino igual, mas como privá-la da razão de sua existência? A torturante angústia de ter de optar por uma atitude que envolvia a vida de outra pessoa, parecia ser uma maldição maior que sua condição. Estava cansado de tudo.
Sem revelar o objetivo de sua viagem, Blenda solicitou o auxilio da comunidade para poderem viajar para Moscou. Rayssa consentiu no envolvimento da comunidade. Desde que conhecera a delicada moça, afeiçoara-se a ela. Mesmo o pai de Rayssa havia dedicado grande apreço por Blenda.


-- Quando partirão?
-- O mais breve possível.
-- Quem é o misterioso amigo?
-- Um antigo namorado.
-- Um marido, quem sabe? Alguém com quem poderia ter constituído uma família caso não fossem transformados em um de nós.
-- Ainda podemos nos tornar uma família.
-- Conhece os riscos de se estabelecer tal vínculo.
-- Ele é a razão pela qual não desisti de minha existência. Não fosse a certeza de que o encontraria, um dia, há muito teria colocado um fim em minha triste sina.
-- É muito louvável este amor que sente por ele, mas será que é correspondida?
-- Sei que sou.
-- Então está bem. Arrumaremos tudo e dentro de dois dias estarão voando para Moscou.


Ao ser informado a respeito dos planos da comunidade, Stanislaw sentiu-se menos angustiado. Finalmente, após séculos, se veria novamente frente a frente com o ser que o havia transformado em uma fera irracional. A mordida que o tornou um vampiro não era nada comparada a ação daquele a quem procurava destruir. Suas veias latejavam de tanta energia.


-- Ainda está em tempo de desistir.
-- O mesmo digo a você. Podemos ser felizes longe de tudo isto. Ainda somos os mesmos.
-- Não! Jamais seremos os mesmos. Desde que aquele chacal cruzou meu caminho, jamais pude olhar-me como antes.
-- O que de tão grave aconteceu?



Stanislaw olhou-a com pesar. Seu amor ainda gritava em seu íntimo, mas os fatos eram cruéis demais. Apesar da dor, relatou o desastroso encontro com o famigerado igual.
Blenda ouviu-o em silêncio. Seus olhos começaram a libertarem as lágrimas que tanto teimava em represar, sentiu que a ira de seu antigo amor era justa e ele não se transformara em nenhum monstro. Embora fossem vampiros, não eram bestas assassinas.
-- Podemos apresentar o caso diante da comunidade.
-- Não. Ele deve ser destruído e somente eu posso conseguir.


O silêncio que substituiu o diálogo foi sepulcral. Blenda permaneceu refletindo enquanto Stanislaw remoia sua ira. Seus olhos estavam cerrados ao presente, sua razão agrilhoada ao passado que insistia em alimentar.


-- Podemos voltar para nossa cidade.
-- Não.
-- Mas por que?
-- Porque já não somos mais quem éramos.
-- Por que? Por acaso não estou como antes? Pode ver a velhice estampada em minha alma?
-- Não. E mesmo que pudesse, você sempre será a mulher mais linda que conheci.
-- Então por que não podemos retomar nossas vidas do ponto onde elas foram interrompidas?
-- Por que uma doença nos consome. Não temos o direito de almejar a felicidade. Somos malditos!
-- Não! Somos diferentes, mas não malditos. Podemos ser responsáveis por ações condenáveis, mas não somos cruéis. Apenas agimos de acordo com o instinto da sobrevivência.
-- Sei que não posso impedi-la de vir atrás de mim, mas se o fizer, quero que fique bem claro que não pretendo prolongar minha existência além do tempo necessário para por um fim ao desgraçado que se oculta sob o manto da hipocrisia.




A viagem foi tumultuada. O avião que os levava até Moscou enfrentou turbulências além do normal. As energias concentradas nas almas de ambos digladiavam-se sem que eles tomassem consciência de sua ocorrência. Uma alma, dominada pelo mais puro amor, tentava libertar a outra, dominada pela sede de vingança nascida do mais ferrenho ódio, dos meandros que o rancor originava.
O embate foi árduo e até o final da viagem não se notava a existência de um lado vencedor. Stanislaw não arrefeceu sua sede de vingança e Blenda não desistiu de fazê-lo esquecer o ódio e deixar que Atila encontrasse sua própria condenação.
Moscou estava gélida e deserta como há muito não se via. O inverno era um dos mais rigorosos dos últimos anos. A nevasca quase impediu o pouso da aeronave. Somente a habilidade do piloto fez a aterrissagem acontecer dentro da normalidade possível para as condições da pista.
Obedecidos os tramites normais de identificação e verificação pelas autoridades do aeroporto, Blenda e Stanislaw seguiram para o hotel que havia sido escolhido pela comunidade. Dali eles podiam partir para qualquer parte do território russo.


-- Como está frio!
-- Isto não o lembra nada?
-- O que?
-- Nossa última noite.
-- Uma noite que jamais deveria ter existido.
-- Não vê que estamos tendo a oportunidade de reparar os enganos cometidos? Estamos aqui a sós sem nada que nos impeça de extravasar nosso amor.
-- Nada a não ser nossa condição bestial.
-- Quem foi o juiz ou autoridade que seja que lhe proclamou não podermos viver o sentimento que sentimos?
-- Não preciso de juizes ou quaisquer outras autoridades. Sei que não podemos dar vida a uma união fadada a danação.
-- Por que? Por que uma união entre nós estaria fadada a danação?
-- Que espécie de prole acha que geraríamos?
-- E quem está falando em gerar prole? Estou falando em viver o amor que nos une. Realizar um sonho que está perdido no tempo. Saciar um desejo que arde em nós há séculos!




Os olhos marejados da mulher a quem jurara amar por toda vida o tocaram fundo. Toda emoção, que ele teimava em represar em seu coração e relegar a um passado que considerava morto, eclodiu com violência.
Sem ter domínio da própria razão, abraçou-a com ardor e entregou-se ao delírio que a paixão faz nascer nos âmagos dos apaixonados. Lábios há muito ressecados pela distância encontravam-se e se consumiam em beijos ardentes. A respiração tornava-se inconstante e a pulsação atingia ápices vertiginosos.
As mãos bailavam em caricias suaves e ritmadas. As roupas iam sendo abandonadas pelos cantos do quarto. Os corpos trêmulos vibravam sob o contato das peles, o frio peculiar a espécie não os incomodava. O calor de seus corações compensava a ausência de manifestações acaloradas de seus seres.
Sem receios ou pudor, arrastaram-se pelo chão e se entregaram com volúpia. A tão desejada comunhão acontecia em um momento especial. As energias estavam concentradas e, embora não fossem destinadas ao ato, era nele que elas estavam sendo empregadas.



Os sons animalescos que emanavam de suas gargantas poderiam gelar o sangue de qualquer mortal, mas não de um vampiro. Suas essências se misturavam na plenitude da entrega e suas individualidades desapareciam ante o explodir do clímax de suas emoções. A união estava completa.
Antes de se deixar dominar pela sonolência que começava a entorpecer-lhe os sentidos, Blenda aplicou o soro em Stanislaw e depois em si mesmo. Não precisavam deixar o leito naquela noite. Sua mente precavia-se com a instável situação. Se Stanislaw insistisse em sua vingança, talvez não tivessem outra oportunidade para se unirem tão intensamente.


Após uma noite de realizações sentimentais, Stanislaw despertou sentindo-se confuso. Sua razão parecia dominada por um torpor paralisante. Virando-se para o lado, encontrou Blenda entregue ao sono que somente aqueles que se sentem satisfeitos podem experimentar. Ficou olhando-a com carinho até sentir um leve incômodo a agitar-se em seu íntimo.



Levantou-se e apurou os instintos na tentativa de identificar a origem do alerta que soara em seu âmago. Utilizando suas habilidades, sentiu a presença ameaçadora de uma entidade muito forte. Quem seria o possuidor de tamanho poder?
De repente a porta do quarto foi violentamente arrombada. A figura sinistra de um homem vestido com roupas de caçador e portando uma arma potente surgiu diante de um pasmado Stanislaw.


-- Finalmente minha vigília é recompensada.
-- Quem é você?
-- O homem que vai conduzi-lo a prisão, seu monstro.
-- Sob que acusação?
-- Acuso-o de ter violentado e assassinado varias moças indefesas em minha propriedade.
-- Está enganado. Cheguei a esta cidade ontem a noite.
-- Está querendo me enganar? Não acredito nas mentiras que inventa.
-- Pode conferir minha passagem. Está sobre a cômoda.
-- Não tente nenhuma gracinha.
-- Não tentarei.
Com um olho no móvel e outro em Stanislaw, o homem verificou a exatidão da afirmação feita por seu interlocutor. Custou um pouco a admitir que equivocara-se, mas não tinha como refutar a prova apresentada.
-- Pode ter forjado esta passagem.
-- Não o fiz. Vim até esta cidade atrás de um criminoso.
-- É policial?
-- Não. O criminoso que estou caçando não pode ser alcançado pelos braços da lei.
-- Entendo. Deve ser tão canalha quanto aquele que estou perseguindo.
-- Como é o homem a quem persegue?
-- Alto, magro, cabelos negros e branco feito leite.
-- Como ele assassina as moças?
-- Perfura seus pescoços com algum punção. Elas sangram até a morte.
-- Talvez seu assassino não seja um homem comum.
-- O que?
-- Alguma vez cogitou a possibilidade das moças estarem sendo vítimas de um vampiro?
-- Vampiro! Rapaz, você anda lendo muito conto de terror.
-- Como pode um dos berços do vampirismo renegar a existência dos seres amaldiçoados?
-- Hei, vai com calma. Para mim tudo bem se acredita que eles existem. Eu só estou interessado em prender o assassino que vem agindo em minhas terras.
-- Onde fica sua propriedade?
-- Na região leste. Um pouco afastada dos limites da cidade.
-- Leste!



Seria apenas coincidência? As informações obtidas na comunidade apontavam a localização de Atila em algum lugar a leste de Moscou. Antes que tivesse a possibilidade de questionar o homem, Blenda despertou:


-- O que está havendo?
-- Oh, está acompanhado de sua senhora! Desculpe-me não havia notado a presença da senhora.
-- Quem é o intruso?
-- Um caçador.
-- O que faz aqui?
-- Confundiu-me com sua caça.
-- O que?
Instantaneamente Blenda espantou os resquícios de sonolência que ainda a dominavam. Stanislaw confundido com a caça que o homem perseguia? Isto só podia significar que ele era um caçador de vampiros.
-- Não se preocupe, senhora. Já está tudo esclarecido. Foi um equivoco de minha parte.
-- O homem que ele persegue é da cidade e nós chegamos ontem a noite.
-- Isto mesmo. Eu conferi a passagem.
-- Mas então o senhor é um policial.
-- Não exatamente. Sou um ex-integrante do exército vermelho.
-- Ah!
-- Já que não é o assassino que estou caçando, peço que me desculpe e permita-me deixá-los a sós.
-- É claro. E não desista de sua caçada.
-- Jamais.
Com a saída do homem, Blenda fixou sua atenção em Stanislaw. Tentou sondar o que se passava em seu íntimo, mas desistiu. Ele se mantinha hermeticamente fechado em um poderoso forte emocional.
-- O que foi?
-- Eu é que lhe pergunto. Por que este olhar perdido? O que aquele homem lhe revelou?
-- Não estou certo, mas acho que seu débil vampiro não está assim tão debilitado.
-- O que está dizendo?
-- Se não for meu velho desafeto, um outro vampiro anda fazendo estrago considerável entre as moças que vivem na propriedade desse homem.
-- Por que pensa ser resultado da ação de Atila?
-- Simplesmente porque a propriedade fica a leste de Moscou.
-- Ah, então conseguiu saber onde ele está.
-- Não parece estar muito contente por eu ter descoberto o paradeiro do verme.
-- Estou muito temerosa quanto ao resultado deste encontro.
-- Não se preocupe. Estou preparado para enfrentá-lo.
-- Não conhece Atila tão bem assim.
-- Por que não me conta aquilo que ainda não sei?
-- Está bem. Se não tem como demovê-lo desta vingança insana.



Blenda revelou tudo que sabia a respeito de Atila. Uma das informações referia-se ao fato dele ser um dos primeiros vampiros a surgirem. Foi contemporâneo do príncipe dos mortos vivos. Haviam lutado lado a lado contra os invasores das estepes.
-- Um vampiro da primeira geração!
-- Sim. Um dos pioneiros.
-- Mas disse que ele estava debilitado. Desiludido com sua existência.
-- E está. Mas isto não quer dizer que se entregará sem luta.
-- Não temo enfrentá-lo.
-- Ele pode surpreendê-lo.
-- Mesmo assim eu o enfrentarei.
Blenda viu um brilho de ódio vivo luzir nos olhos de Stanislaw. Sabia que qualquer palavra seria inútil. Ele já não lembrava mais seu velho amor. Temeu que sua espera a tivesse levado a um beco sem saída. De que lhe adiantaria possuir a eternidade se aquele a quem amava se mostrava tão distante?


Chegar a propriedade onde Atila vivia não era difícil. Todos sabiam onde se localizava o velho castelo da antiga burguesia local. Os bolcheviques os haviam massacrados e nem mesmo os servos sobreviveram a chacina. Com o tempo, a construção foi abandonada e todos pensavam que houvesse se transformado em ruínas, mas então aconteceu o primeiro ataque.
-- Em que está pensando?
-- Atila é muito perspicaz. Percebera de imediato suas intenções.
-- Tanto melhor. Assim não perderemos tempo.
-- Ele pode já estar sabendo de nossa presença.
-- Não desejo atacá-lo pelas costas.
-- O mesmo não podemos dizer dele.
-- Acredita que ele seria capaz...
-- Como afirmei, ele não se entregará sem luta.
-- Mas pensei que lutaríamos com honra.
-- A honra se dilui ante o medo da morte.
-- Só um covarde agiria assim.
-- Ou alguém que não deseje abandonar esta vida.
-- Veremos o que nos aguarda.


Os preparativos para a jornada que os levaria até o castelo foram concluídos. Stanislaw estava tão absorvido pela sede de vingança que não atentava para a dor que causava a sua amada. Blenda sofria por temer que Atila o matasse e também porque as lembranças do tempo em que desfrutou da companhia do velho vampiro ainda estavam vivas em sua mente.


Assim que o carro parou diante do hotel, Blenda sentiu o peito apertar-se. De uma forma ou de outra, estaria se despedindo de um dos dois seres que mais amava. O relato que fez a Stanislaw retratava apenas uma pequena parte de toda história.
Mal haviam se acomodado no interior do veículo e foram surpreendidos ao identificarem o motorista.


-- O senhor! Reagiu Blenda.
-- Não poderia permitir que partissem atrás do assassino sem minha colaboração.
-- Talvez não esteja bem informado a respeito de quem estamos procurando. Stanislaw quase sussurrou na intenção de provocar temor no homem.
-- Não se preocupe. Mesmo que seja um vampiro, como chegou a alegar, estou disposto a correr todos os riscos.
-- E se não sobreviver? Blenda temia pela vida do incauto caçador.
-- Então terei dado minha vida por uma boa causa.
-- Muito nobre, mas é pura estupidez.
-- Entenda como queira.
-- Bem, já que está tão determinado em nos acompanhar, vamos. Não percamos mais tempo.


*******


O trajeto foi percorrido em silêncio. Cada um se prendia a suas próprias ponderações. Nenhum deles atentava para as sutis modificações que ia se processando na paisagem. À medida que se aproximavam do castelo, todo cenário era tomado por uma esterilidade impar. Entre o fim da secular floresta e os limites do castelo, apenas arbustos já sem vida ocupavam o espaço.
Rudolf, o caçador, recordava-se da família que tanto amava. A esposa linda e meiga como mulher alguma jamais seria; a filha tão igual a mãe, mas com o dom que somente a jovialidade pode conferir as mulheres. Por último, mas tão importante quanto, seu vigoroso filho.
Tanta felicidade e tudo perdido em questão de horas. Uma única noite transformara sua vida em um pesadelo sem fim. Lembrou-se da despedida na nevoenta manhã. Precisava ir até a cidade cumprir suas obrigações. Quando a noite chegou, a tragédia se descortinou ante sua existência.



Os corpos sem vida daqueles que tanto amava foi a recepção que teve ao entrar na aconchegante casa. Mas o destino não foi tão injusto quanto costumava ser. A silhueta do assassino chamou-lhe a atenção e sem perda de tempo, correu em seu encalço. Não conseguiu detê-lo, mas contemplou o suficiente para gravar suas feições.
Uma dor tão forte quanto, mas muito mais antiga, embalava os pensamentos de Stanislaw. Pela enésima vez revia todo seu passado. Amaldiçoou aquele a quem caçava. Repetiu a jura de nunca desistir de sua vingança.
Apenas Blenda se mostrava tranqüila. Não odiava o responsável pelos assassinato e pela transformação de seu amado. Mesmo que quisesse não conseguiria acalentar sentimento de ira para com aquele a quem seus acompanhantes nutriam intenso rancor.


Ao chegarem ao castelo o silêncio sepulcral que dominava o local o fez tremerem. Uma inquietação gritante apossou-se de seus íntimos. Sentiram como se dezenas de olhos os espionassem da escuridão. O perigo era palpável.


-- Estão nos esperando. Assegurou Rudolf.
-- Não esperava algo diferente. Asseverou Stanislaw.
-- Atila nos espera.
-- Onde?
-- No saguão.
-- Maldição. Vociferou Stanislaw.


Perdido o fator surpresa, seguiram para o local indicado por Blenda. A passividade do homem que os aguardava os fez duvidarem de se tratar daquele por quem procuravam. Somente o brilho vivo que ardia em seu olhar testemunhava que a aparente fragilidade escondia um perigoso adversário.


-- Seja bem vinda, minha pequena. Quem são seus amigos. A voz soou amistosa.
-- Olá, Atila. São meu noivo e um amigo de Moscou.
-- Noivo! Finalmente se rendeu aos tempos modernos.
-- É, parece que não tem como evitar. O constrangimento era evidente em seu tom de voz.
-- Mas entrem. O tempo anda muito cruel nestes dias.


''Silenciosamente entraram no fortificado castelo. Stanislaw e Rudolf sentiram-se entrando em uma prisão de onde a fuga era impossível. Seus corações traíram suas intenções. Num átimo perceberam que seus planos já eram do conhecimento do vampiro''.


-- Não se incomodem com minha pessoa. Sei que vieram para me matar, mas mesmo assim devo demonstrar a costumeira hospitalidade dos nobres de minha estirpe.
-- Se sabe porque estamos aqui, melhor terminarmos tudo de uma vez. Bradou Stanislaw.
-- Se é o que deseja...
-- Não! Gritou Blenda.
-- Como? Surpreendeu-se Stanislaw.
-- Não quero perder nenhum dos dois!


''Todo sentimento que sentia por sua amada sofreu um impacto fulminante. A declaração de Blenda o atingiu com tamanha violência que ele chegou a duvidar de que fosse sua noiva quem tinha em sua companhia.''


-- O que está dizendo?
-- Não posso permitir que o mate.
-- Mas ele é um assassino! Manifestou-se Rudolf.
-- Não!
-- Como não? E as moças de minha propriedade?
-- Não foi ele!
-- Senhores! Talvez a sede de vingança que os trouxe até minha casa possa esperar um pouco para ser saciada. Considerem-se meus hóspedes.
-- Não! Não vai se safar assim tão fácil! Esbravejou Stanislaw.
-- Não pretendo escapar a nada. Só me concedam o obséquio de expor-lhes minhas motivações.
-- Por favor! Implorou Blenda.
-- Onde estão os outros? Interrogou Rudolf.
-- Não tem mais ninguém aqui.
-- Mentira! Sei que fomos espionados por todo caminho.
-- Não são do castelo.
-- Quem são? Indagou Stanislaw.
-- Os assassinos que seu amigo procura.
-- Quem são?
-- Um bando de degenerados. Javier é seu líder.
-- Javier! O corsário?
-- Bem, os mares já não são mais como antigamente.
-- O que ele faz aqui?
-- O mesmo que você.
-- Neste caso terá perdido seu tempo. Quando deixar este castelo, você já não poderá mais ser atingido por ninguém.
-- Hei, como ter certeza de que não é o assassino que estou procurando?
-- Atila não se alimenta mais como os antigos. Revelou Blenda.
-- Como assim? Perguntou Stanislaw.
-- Blenda me fornece os frascos contendo os preparados que inventou. Estava cansado de viver caçando e fugindo.
-- Por que me escondeu que mantinha contato com ele?
-- Porque tinha medo de que se encontrassem.
-- Ah, sim. Por isto o protegeu!
-- Não! Protegi a ambos.
-- Chega de conversa! Reagiu Rudolf levantando-se e se dirigindo para onde Atila estava.



Antes que conseguisse chegar até o assento ocupado por Atila, uma pedra inflamada partiu a vidraça caindo bem a sua frente. Por pouco ela não o atingia. Imediatamente pisou sobre a labareda evitando que o fogo se espalhasse.


-- O que é isto? Assustou-se Rudolf.
-- Então, velho decrépito, por que não sai e nos enfrenta? Soou a provocação vinda de fora.
-- Quem é? Quis saber Stanislaw.
-- O verdadeiro assassino. Respondeu Blenda.
-- Javier?
-- Ele e seu bando. Há anos ele vem tentando me matar.
-- O que o impediu?
-- Os outros ancestrais.
-- Como? Pensei que todos estivessem mortos.
-- Não. Os antigos estão protegidos em um mosteiro nas terras altas do norte da ilha dos druidas.
-- Em um mosteiro?
-- Não se espantaria tanto se tivesse mantido ligação com os de nossa espécie. Aparteou Blenda.
-- O que mais não sei?
-- Depois conversamos sobre isto, agora precisamos resolver outra questão.
-- Quantos estão com Javier?
-- Cerca de vinte ou trinta.
-- Podemos dar conta deles?
-- Se unirmos nossas forças, sim.
-- Está bem. Vou dar uma trégua. Nossas diferenças ficam para depois.



Apesar de informados sobre as atividades de Javier, Blenda e Atila não estavam certos a respeito do número de seguidores que o rival possuía. Em outros tempos, Javier conseguira reunir mais de cem iguais, mas sua postura tirana havia afastado muitos e criado um exército de inimigos. Atualmente apenas dezesseis o seguiam.
A batalha durou a noite toda. Rudolf não fazia idéia da espécie de inimigo que enfrentava. Só se convenceu de que não eram humanos quando um deles tentou cravar seus caninos em sua jugular. Apavorado, desferiu soco tão violento no agressor que este foi lançado sobre umas estacas que serviam de apoio a um quadro.



Embora em maior número, o bando de Javier não contava com a mesma experiência dos atacados. Atila ainda detinha muito de seu antigo poder e o utilizava com eficácia. Blenda havia aprendido muitas técnicas de combate com seu mestre e Stanislaw passara muito tempo sozinho tendo que se defender de todos.
O sol estava para surgir por entre as nuvens quando os atacados obtiveram a supremacia sobre os atacantes. Imobilizado no centro do saguão, um amedrontado Javier aguardava seu destino. Atila o fuzilou com seu gélido olhar.


-- Muito bem, seu cão imundo, o que farei com você?
-- Acabe logo com tudo. Sua presença me enoja!


Blenda bem que tentou impedir, mas Rudolf foi mais rápido. Sem esperar pela reação de Atila, empunhou um pedaço de madeira que estava ao seu lado e o cravou no corpo de Javier. A madeira traspassou o corpo atingindo o coração do vampiro. O urro lancinante que se ouviu foi aterrador. Javier pendeu para frente e desabou já sem vida.


-- Desculpem-me, mas não podia permitir que este verme saísse impune.
-- Não tem que se desculpar de nada. Ele teve o que mereceu. Apoiou Stanislaw.
-- Não tenho mais nada que fazer aqui.
-- O que irá dizer em sua casa? A preocupação de Atila era evidente.
-- Não se preocupem. Não teria coragem de relatar nada do que se passou aqui. Na certa iriam me julgar um louco.
-- Apesar das diferenças, será bem vindo sempre que desejar vir até minha casa.
-- Não sei se terei vontade de voltar, mas se tiver, me sentirei honrado em ser seu hóspede.


*********


Finalmente a sós. Sem mais ninguém para interrompê-los, Stanislaw estava pronto para seu acerto de contas. Esperou que os ânimos fossem serenando e também que sua atenção tornasse mais apurada. Blenda e Atila aguardavam pelo desfecho de suas próprias tragédias.


-- Podemos adiar nosso acerto para mais tarde?
-- Por que?
-- O sol!
-- Tem aversão ao sol?
-- Não. Mas minhas vistas estão cansadas. Não posso mais agüentar a luminosidade do dia.
-- Deveria experimentar um par de óculos.
-- Não me adaptei.
-- Está certo. Já esperei tanto que umas horas a mais não me tornarão mais ou menos desgraçado.
-- Obrigado. Podem ficar a vontade. Vou me recolher e a noite voltamos a nos encontrar.


Atila se recolheu e Blenda fixou seu olhar em Stanislaw. Tinha vontade de despejar toda verdade sobre o amado, mas sabia que esta era uma tarefa que somente a Atila cabia realizar. Não podia romper o acordo que fizera.


-- O que me esconde?
-- Não me obrigue a mentir.
-- Por que?
-- Não posso trair a palavra empenhada.
-- Jurou lealdade a este verme?
-- Você não conhece os fatos. Espere para fazer seu julgamento depois que ouvir o que ele tem para lhe contar.
-- Para que? Para poder agradecê-lo por ter me transformado em um monstro?
-- Lamento se o ódio o cega.


As horas se arrastaram com uma lentidão enervante. A todo instante Stanislaw verificava a posição dos mostradores de seu relógio. Blenda, não desejando partilhar das ondas de rancor que ele emanava, o deixara a sós. Seu coração temia que o furor, alimentado durante tantos anos, se tornasse a pedra que moveria a avalanche que sepultaria o amor que nutria por seu antigo amigo.
Com muito custo Stanislaw conseguiu suportar o transcorrer do dia. Quando a lua surgiu ele regozijou-se. Finalmente poderia efetivar sua vingança. Esperou que Atila aparecesse e se colocou na posição de quem não deseja conceder uma única vantagem ao inimigo.


-- Muito bem, animal! Vamos colocar um fim a nossas diferenças.
-- Não possuo nenhuma diferença com você. Sua obstinada sede de vingança o cega.
-- O que esperava? Que me submetesse a seu comando como tantos outros fizeram?
-- Não vejo nenhum lacaio a obedecer ordens que não existem.
-- Não me engana com este joguinho.
-- Minha intenção não é demovê-lo de seu objetivo, mas conceda-me o direito de expor minhas razões.
-- Não mudará em nada minha determinação.
-- Mais um motivo para ouvir-me.
-- Que seja. Mas não estarei desprevenido. Conheço muito bem seus artifícios.
-- Certo. Começarei lhe perguntando o que se lembra do tempo em que ainda era um mortal.
-- Tudo.
-- Ótimo! Assim facilita meu relato.
-- O que tem de tão especial nas lembranças de um tempo que jamais voltará?
-- Já se esqueceu da epidemia que irrompeu naquela época?
-- Como poderia? Ela ceifou a vida de muitos que amava.
-- Colaborou com os padres e os cientistas para tentar minimizar as conseqüências da peste.
-- Era o mínimo que podia fazer.
-- Nunca se perguntou como conseguiu escapar ileso do contato com tantos doentes?
-- Não fui o único.
-- Não, não foi. Mas todos que foram contaminados, morreram.
-- O que toda esta conversa tem a ver?
-- O estado febril que o consumiu por dias rompeu algumas lembranças e o impede de recordar-se de fatos que não presenciou e não lhe foram revelados.
-- Que fatos são esses?
-- Durante semanas ficou a beira da morte. Seu pai sofria com seu estado e implorava por uma ajuda que nunca chegava.
-- Meu pai me amava.
-- Sim. Seu pai sempre amou aos seus. Foi justamente este amor que o salvou.
-- Como?
-- Muito antes de seu pai conhecer sua mãe. Quando ele ainda era um rapaz imberbe, cruzou meu caminho.
-- Cão danado! Também estendeu sua maldição a meu pai?
-- Espere! Deixe que conclua o relato. Quando seu pai me encontrou, acabava de vencer uma cruel batalha com um vampiro inimigo. Estava em estado tão lastimável que mesmo sendo um vampiro, não conseguiria sobreviver a noite.
-- Deveria ter morrido!
-- Deveria, mas o coração bondoso de seu pai não permitiu. Ele me levou para sua casa e, com o apoio dos pais, cuidou de meus ferimentos. Durante o período que fiquei acamado, ele sempre esteve ao meu lado. Mesmo quando ficou sabendo quem era, ele não me abandonou.
-- Meu pai sabia que era um vampiro?
-- Sim. Não pude evitar que ele descobrisse. Somente o sangue poderia restabelecer minhas forças.
-- O que fez?
-- Solicitei que ele me trouxesse alguns animais para que pudesse sugar-lhes o precioso liquido.
-- Não atacou meu pai e meus avós?
-- Fraco como estava, mesmo que desejasse não conseguiria. Porém, não foi só minha fraqueza que fez com que não lhes fizesse mal. Sentia-me grato por terem me auxiliado. Não podia devolver tanta dedicação com atitude vil. Depois que me restabeleci, agradeci a ajuda e parti.
-- Muito bonito, mas o que tudo isso tem a ver com minha vida?
-- Antes de deixar a propriedade de seus avós, prometi a seu pai que sempre que ele precisasse, estaria pronto a ajudá-lo.
-- Bela forma encontrou para cumprir a palavra empenhada. Transformando seu filho em um monstro.
-- Este foi o preço que ele decidiu aceitar para que seu filho não perecesse consumido pela peste.
-- O que?
-- Sim. Depois de esgotar seu rosário de rogos, ele lembrou-se de minha palavra e foi atrás de mim. Quando me encontrou, estava transtornado. Tentei demovê-lo da idéia alertando-o sobre as conseqüências, mas ele preferia ver seu filho transformado em um vampiro a ter de depositar seu corpo inanimado em uma vala qualquer. Sua cota de luto já estava além de suas possibilidades.
-- Está dizendo que só me transformou em um vampiro porque meu pai lhe pediu?
-- Sim.
-- Mentira!
-- Infelizmente não tenho como provar minha história, mas tudo se passou como lhe contei.
-- É tudo mentira! Foi outro quem me contaminou. Quando nos encontramos, eu já era um ser maldito! Nem mesmo o conhecia quando tudo, que relatou, ocorreu.
-- Não. você já era um vampiro muito antes daquele encontro heróico com o desgarrado que aterrorizava a vila onde moravam seus amigos.
-- Mentira!
-- Não! Não é. Blenda, que os deixara a sós para a conversa, surgiu interrompendo o diálogo.
-- O que sabe além daquilo que ele disse?
-- Tenho uma carta ditada por seu pai. Se verificar a assinatura verá que não minto.



Stanislaw demorou a pegar o amarelado papel das mãos de sua amada. Sabia que o pai, assim como todos camponeses de sua época, era um inculto. Tinham que empregar todas energias nas tarefas ligadas a terra, não tinham tempo para instruírem-se.
Desconfiado, desdobrou o papel e leu as poucas linhas que ele continha. Terminando a missiva o selo clerical e a assinatura que tão bem conhecia. O bispo havia redigido a carta e a certificara com o selo de seu anel. Aquele papel era autêntico.


-- Convencido?
-- Mas... Mas...
-- Atila agiu segundo sua honra. Atendeu ao apelo de alguém que o ajudara e não como um agressor.
-- Por que?
-- Preferiria ter sucumbido a peste?
-- Não sei!


A revelação foi mais contundente do que Blenda podia supor. Stanislaw amassou o papel e deixou o castelo sem nada dizer. Atila estreitou a pupila no peito tentando sufocar seus soluços. Mesmo sem ter testemunhado nenhuma morte, parecia que seu mundo desabava.
Enquanto vagava pela aridez do local, Stanislaw tentava digerir seu próprio veneno. Sempre acreditara que havia conhecido seu inimigo em uma ocasião em que estava para se destruir. Agora já não tinha mais certeza de nada.
Recordou o tempo difícil que vivia quando encontrou-se com o velho vampiro. Ele instigou sua ira como única maneira de evitar seu fim. Não fosse pela fúria que despertou em seu âmago, teria sucumbido à depressão.



Com o passar dos anos o preço mostrou-se muito alto, mas ainda assim ele jamais se deixou abater por sua maldição. Sempre arriscava-se na intenção de encontrar aquele que colocaria fim a sua existência, mas nunca deparou com ninguém capaz de vencê-lo.
Toda gentileza que possuía foi arrancada de seu íntimo e substituída pela fúria insana. Odiou seu inimigo por este motivo e agora descobria que o motivo deveria ser outro. Fora ele e não o desgarrado que o tornara um vampiro.
Apesar de toda fúria, sentia que estava em debito com seu desafeto. Por duas vezes ele lhe salvara a vida. Lembrou-se do momento em que se viu diante dele e tomou consciência de que em momento algum ele lhe dirigiu qualquer onda de ódio.



Toda fleuma rancorosa partia dele mesmo. A fúria o havia derrotado. Ele não podia mais conviver com os outros. Seria um desgarrado, um paria diante dos demais.
Os meses foram se sucedendo e nenhuma notícia sobre o paradeiro de Stanislaw. A neve já derretera e o sol se tornara o principal astro regente quando ele retornou.
Seu aspecto era de completo desalento. Olhos fundos e corpo quase cadavérico. Cabelos desgrenhados, lábios partidos, roupas rasgadas. Enfim, era a verdadeira figura de um farrapo humano.


-- Stan!
-- Eu sinto muito!


Para os corações que se amam palavras em demasia são desnecessárias. O gesto afável do amado calou a dor que trazia no peito e nada mais existia. Um ardente beijo foi tudo que nasceu do reencontro. O amor superara as divergências e as angústias que haviam dominado a alma de Stanislaw.
A noite, mãe de todas as criaturas das sombras, chegou e se foi varias vezes. A vida cuidou de colocar as peças em seu devido lugar. O ódio se fora e a perseverança de uma alma singela conseguira revolver o solo do âmago do ser amado. Blenda havia vencido.



-- Vamos. Convidou abraçando Stanislaw com carinho.
-- Já está na hora?
-- Sim. Atila nos espera.
-- Mas ainda temos um tempo.
-- E o que pretende fazer neste tempo que temos?
-- Não sei. Estava pensando em tirar suas roupas e jogarmo-nos neste leito macio.
-- Hum, isto vai nos fazer perder o começo da cerimônia.
-- Não se preocupe, Atila compreenderá.
-- Sei que compreenderá, mas não podemos quebrar as normas. Ele não merece que o deixemos em situação delicada.
-- Não, não merece.
-- Então?
-- Vamos esperar que a cerimônia se acabe. Afinal, temos toda eternidade para nos amarmos.
-- Toda eternidade e muito mais.
-- Eu te amo!


O antigo campanário já não serve mais de local de vigília para o desolado ser da escuridão. Os cidadãos já não correm mais o risco de serem atacados em seus passeios noturnos. A neve voltou a se instalar como senhora da região, mas seu sopro gélido já não afeta os âmagos dos nubentes.


O amor superou o tempo, escapou a morte e triunfou sobre os obstáculos. Blenda sorriu ao fixar seus olhos em seu amado; o fruto da união nascida em época remota, pulsava em seu útero, mas esta era uma novidade que Stanislaw ainda teria que esperar um pouco para tomar conhecimento.

Néon


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