quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Sade nos salvará – ou delitos cotidiano- Denise Ravizzoni




I


Era seu cliente de muitos anos. Uns quatro, ao menos. Quando viu seu nome na agenda do dia, percebeu que jamais gostara do sujeito. Era particularmente irritante. Ele chegou, sentou-se na cadeira, abriu a boca, recebeu a anestesia. Saiu do consultório com dois canais tratados em dentes que sempre haviam sido sãos.

II
A prisão não era uma beleza, mas tinha lá suas compensações. Era encarregada do correio. As segundas-feiras eram especialmente doces, dias em que a moreninha evangélica erguia os olhos esperançosos. Queria notícias de casa.
- Sinto muito, querida, não chegou nada.
Na salinha abafada, crescia no fundo de uma gaveta inferior a pilha de cartas lacradas.

III
Despejava a ração seca na privada e dava a descarga antes que tudo empapasse. Depois, ouvia o miadinho fino e sentia o rabo felpudo roçar sua panturrilha. Uma antipatia imensa surgia. Com o bico do sapato tratava de afastar o bicho, um chute leve, um empurrão. Só para repelir, não para machucar. Presente infeliz de Dia dos Namorados. À noite, quando ele chegava, ela corria para a porta, olhos úmidos e voz chorosa:
- Não sei o que há com ela, amor. Se alimenta, brinca, dorme, mas a pobre gatinha continua definhando!



IV
Conferiu os papéis no guichê. Protocolos, assinaturas, petições, procurações. Merda. Estava tudo certo. Do outro lado do vidro, o rosto ansioso, olhos quase saltando das órbitas:
- Está tudo certo, moço?
- Tudo ok, sim...
(uma pausa, observa a expressão apreensiva pelo vidro ensebado)
- ... mas você terá que voltar amanhã. O fiscal que libera a petição está fora.
Por dentro ri, e afaga o carimbo no bolso do casaco.

V
Fazia a perícia de documentos para o sistema de saúde. Trabalho moroso, burocrático e repetitivo. Até que um dia viu um nome familiar num pedido de averiguação para transplante. Situação aguda necessitando de resposta com a máxima urgência. Sem demora, carimba ‘NEGADO’ em vermelho brilhante no campo apropriado. Haveria um ex-marido a menos no mundo. A rotina trazia recompensas, afinal.



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