segunda-feira, 1 de março de 2010

Hilda Hilst, essa desconhecida


"Eu sempre me fascinei com o matemático indiano Srinivasa Ramanujan. Ele dizia que para resolver seus intricados teoremas era movido apenas pela beleza das equações.
Na poesia também é assim. É uma espécie de exercício do não-dizer, mas que nos dilata de beleza quando acabamos de ler um poema." (Hilda Hilst)


A morte de Hilda por Rey Vinas

Hilda Hilst morreu hoje (4/2/2004), de falência múltipla dos órgãos, depois de uma queda em que fraturou o fêmur, me diz a Sônia, atravessada daquela melancolia da perda que se nos abate quando perdemos o rumo, o prumo, o
riso. Os jornais trarão certamente a biografia e alguns poemas de Hilda; dirão da grandeza de seu texto desconcertante, de sua beleza enigmática quando jovem, de sua desistência de quase tudo em favor da literatura, de sua solidão, de sua dezena de cães, de sua bem-comportada loucura, etc.
Por isto preferirei tocar em um outro aspecto de sua vida, um aspecto transversal, digamos, ligado a uma questão incômoda a mim e certamente a todos os que admiravam as inegáveis qualidades da escritora monumental que ela era: se era magnífica a sua escrita, por que tão poucos liam Hilda?
Não é difícil constatar que a liam basicamente escritores e literatos, alguns especializados nesse negócio de texto literário. E temos, malgrado, de constatar que Hilda era a escritora de um "grupo de eleitos", num sentido infelizmente elitista e perverso, resultado de nossa condição de país periférico, dependente e quase que apenas semi-alfabetizado.
Porque para ler Hilda é preciso conhecer minimamente a literatura e seus meandros, ter pelo menos lampejos de erudição (olha lá: não é aquela erudição besta) para perceber, mesmo que intuitivamente, a maestria de sua arquitetura verbal, o poder contagiante de sua linguagem, de seu poema - um desafio quase intransponível a nossa estatística de mais de 50 milhões de
analfabetos (inclua aí, por favor, os analfabetos funcionais, aquela legião que não consegue entender um parágrafo com mais de duas frases) e mais de 40 milhões de brasileiros declaradamente incultos (que não estão nem aí para essa coisa chamada literatura e suas adjacências).
Resumindo: para ler Hilda precisávamos de um povo culto (e alerto mais uma vez que falo aqui não da cultura de perfumaria, voltada à inflação dos egos, mas da cultura como valor espiritual e de sensibilidade). E apesar de nossa
vocação para a beleza, de nossa capacidade inata para o deslumbramento diante dos signos, da fantasia e da surpresa, estamos cada vez mais distantes, como povo, de compreender o valor de uma escritora da dimensão de
Hilda.
Estamos por demais ocupados, como nação, em exportar bananas, madeira e roupas de praia, em dar solução paliativa a problemas provisórios - que sem dúvida se tornarão crônicos, porque nos tem faltado o sustentáculo de um país promissor: um povo verdadeiramente educado, uma juventude não superficial, capaz de lidar com linguagens complexas e dotada de
sensibilidade. Mas essa mesma juventude é hoje incapaz de ler Hilda. Com raríssimas exceções, os jovens não a suportariam: não foram preparados para isso.
Lembro-me de que, certa vez, pediram-me que "declamasse" um poema num encontro de bibliotecários em Brasília. Eu "li" dois textos de Hilda que se encontram justamente neste site da Artelivre:

"Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo.

Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.
O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:
"Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas".
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto
Não cabe no meu canto".
e

"Dizeis que tenho vaidades.
E que no vosso entender
Mulheres de pouca idade
Que não se queiram perder


É preciso que não tenham
Tantas e tais veleidades.

Senhor, se a mim me acrescento
Flores e renda, cetins,
Se solto o cabelo ao vento
É bem por vós, não por mim.

Tenho dois olhos contentes
E a boca fresca e rosada.
E a vaidade só consente
Vaidades, se desejada.

E além de vós
Não desejo nada. ". (Trovas de muito amor para um amado senhor)

Estávamos próximos do fim da Era FHC, pelo menos achávamos isso. Ardíamos em esperança por uma sociedade que viria finalmente a ser transformada em função de um novo quadro de valores. E os poemas de Hilda naquele momento
soaram como um estandarte, uma espécie de unção. Um silêncio comovido apoderou-se do auditório e eu percebi, pela primeira vez em toda a minha convivência com aquele texto cerebral, que a mensagem de Hilda havia sido captada intensamente por uma platéia de certa forma comum ou pelo menos não especializada.
E me perguntavam: Quem é essa escritora?
Há décadas meu pai me dizia que nada haverá que possa se opor à aliança entre a competência e a ternura. Hoje eu somaria a esses elementos a espiritualidade. Somente quando realizarmos o projeto dessa trindade nada haverá que nos derrote. E tal como Hilda teremos alcançado alguma forma embrionária de sublimidade.

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Néon


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