sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

El Cabrón - Lucia Czer










_Cabrón...!

Era Suárez, de novo a implicar com Donato! Todos já estavam fartos de assistir à ofensa jogada em alto e bom tom a cada vez que o paraíba passava pela rua em frente ao bolicho.

Donato era um cara baixinho, magro, moreno de sobrancelhas cerradas que faziam sombra aos seus olhos escuros e sombrios. Ágil na esquila, tinha fama de ser trabalhador, mas sorumbático. Bebia sozinho na ponta do balcão e não se misturava no jogo de dados ou no truco. As más línguas diziam que ele dera nesta terra fugindo da polícia nordestina, depois que numa roda de capoeira, entre um movimento e outro, puxara da peixeira e estocara um desafeto.

No pampa, havia conseguido emprego numa estância e ali arribara, sem envolver-se na vida de ninguém. Vivia com Inezita, uma castelhana bonita e faceira, que ajudava nos gastos da casa lendo mãos.

Conheceram-se na “Ramada”, lugar de mulher-dama, onde Inezita prestava seus serviços aos homens da cidade. Sabe-se lá como e por que, o fato é que foram morar juntos no rancho de um cômodo só que Donato erguera. E todos acostumaram-se a vê-los juntos, silenciosos e pouco expansivos. Apesar disso, Inezita chamava a atenção com a cintura delgada, pernas roliças e a cabeleira negra, encaracolada, batendo às costas. Tinha um rosto lindo, olhos grandes e escuros de gente nativa, e brincos de ouro português nas orelhas.

As pessoas sentiam-se incomodadas ao presenciar Suárez importunando Donato. Pressentiam que sob as águas paradas, havia um torvelinho prestes a explodir.

Inezita, às vezes, retrucava fazendo um gesto com a mão, erguendo somente o dedo do meio e entredentes lascava:

- Hijo de uma puta! Cerdo! Perro sarnento!

Suárez ria às gargalhadas e continuava tomando pinga recostado à parede caiada do bolicho, rodeado de outros maracheiros.

Donato, quieto, continuava sentado no banquinho tripé, ao calor do sol fora do rancho, amolando facas e tesouras que os vizinhos levavam para afiar por alguns reais, quando o paraíba estava de folga do trabalho. O plano do casal era construir uma cozinha com piso acimentado. Era o sonho de Inezita: não ter mais que varrer o piso de terra batida e poder receber visitas sem ser na única peça da casa onde ficavam distribuídos os poucos móveis, amontoando-se cozinha e quarto.

Era tempo de tosquiar as ovelhas. Donato passava mais tempo na estância. Voltava para casa depois de dois ou três dias, suado, cansado e faminto. Na guaiaca, as notas avolumando-se e o sonho de Inezita mais próximo.

Donato caminhava pela estreita senda da porteira até o rancho e ouviu as risadas soltas de Inezita juntamente com a música tocada no radinho a pilha. Soava junto um timbre de voz masculina... Donato moderou os passos, cabisbaixo.

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- Cabrón!

Estrondou a ofensa na rua, calando os passantes.

Desta vez todos repararam na figura de Donato. Calças brancas folgadas, camisa regata, pés descalços, fita amarrando num rabo de cavalo os cabelos...

Acercou-se de Suárez e o povo abriu a roda. Donato gingou, no movimento ritmado de todo o corpo, acompanhando o toque do berimbau mentalmente, mantendo o corpo relaxado. Durante o gingado, mantinha-se em movimento permanente, simulando tentativas de ataque e contra-ataque, sempre atento às intenções do oponente, em contínua postura mental de esquiva e proteção dos alvos potenciais de golpes. Riscou o chão com a ponta do pé e chamou pra briga. Na cabeça de cada um dos presentes, soava o ritmo cadenciado do berimbau.

A capoeira é destreza, é malícia, é dança guerreira. Nasceu como luta de escravos em busca da liberdade; luta, dissimulada na elegância de gestos quase sagrados, na descontração alegre e galhofeira do espetáculo. Espetáculo sublime, quando estão em harmonia o toque do berimbau, os demais instrumentos, a voz do mestre, o coro polifônico, a dança dos dois guerreiros e a emoção do perigo real, sempre à espreita, à espera do momento certo, o bote fatal...O espetáculo agora parecia trágico. A capoeira é jogo, dança, luta. É axé. Nasceu sob o signo da libertação. É um jogo complexo, que funde a música e a movimentação corporal num todo harmônico. É dança, é canto, é jogo de habilidade e destreza corporal, mas também é luta, e das mais terríveis.

E foi assim que Donato enfrentou Suárez. O uruguaio era grandão e valente, sabia brigar e tinha a força dos homens acostumados na rude lida do campo. Mas não tinha a leveza e a destreza dos movimentos esquivos e ágeis do paraíba. Num gesto mortal, entre uma ginga e outra, um rabo-de-arraia e a peixeira voou em direção ao pescoço taurino de Suárez, fazendo-o rolar no chão de balastro, esguichando sangue e roncando como um porco abatido.

As nuvens, prenunciando o temporal que se aproximava, abriram-se. Trovejou forte e a água desabou lavando o sangue de Suárez e a honra de Donato.

Dele, nunca mais se teve notícias. Sumiu naquela noite em meio ao vento e à chuva. Só sobrou o rancho que, inesperadamente, havia ganho um piso de cimento. Sobre este, apenas uma flor de corticeira... De Inezita não mais se soube.

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