quarta-feira, 13 de maio de 2009

Para Manter o Juramento-Marcos Rezende Honório






A claridade avermelhada ainda persistia nas montanhas; a lua aparecia no céu, Yapaki não percebeu, a princípio, nada de estranho na aldeia. Sentia-se grata demais por tê-la alcançado antes do pôr-do-sol um abrigo contra o frio e a chuva de uma noite no altiplano, uma cama para dormir, depois de quatro dias de viagem, uma taça de chicha antes de dormir.

Pouco a pouco, porém, ela compreendeu que havia alguma coisa errada. Normalmente, àquela hora, as mulheres estariam circulando pelas ruas, conversando com as vizinhas, comprando os alimentos para a refeição noturna, enquanto as crianças brincavam e brigavam. Naquele fim de tarde, no entanto, não havia nem uma única mulher na rua, nenhuma criança.

Qual seria o problema? Franzindo o rosto, ela avançou pela rua principal, a caminho da estalagem. Estava faminta e cansada.
Deixara o Ayllu muitos dias antes, com uma companheira, a caminho da Casa das Mulheres de Quesasani. Mas sem que qualquer das duas soubesse, sua companheira estava grávida; caíra doente, com febre, abortara na Casa das Mulheres em Tawantin, e ainda se encontrava ali, acamada.

Yapaki não tinha medo de viajar sozinha; já percorrera aquelas montanhas em todas as estações, com todos os tempos. Mas suas provisões se aproximavam do fim. Por sorte, o estalajadeiro era um velho conhecido. Ela também conhecia há muitos anos o homem que pegou sua lhama no estábulo. Ele franziu o rosto quando Yapaki desmontou.

- Encontrou guerreiros na estrada, mestra!

- Não, nenhum - respondeu Yapaki, franzindo o rosto. - Todos os animais das do Suyu parecem estar aqui, em seu estábulo... o que aconteceu? Uma visita do Waka? E o que há com você? A todo instante olha para trás, como se esperasse descobrir seu amo ali, com uma vara na mão para espancá-lo... e onde está o velho Pacha, que não vem receber seus hóspedes?

- O velho Pacha morreu, mestra. Ayama tenta cuidar da estalagem sozinha, ajudada pelas jovens Koya e Ariwa.

- Morreu? Que os Deuses nos guardem! Como isso aconteceu?

- Foram aqueles bandidos, mestra, a quadrilha de Cicatriz; retalharam o velho Pacha ainda de avental. Criaram a maior agitação na aldeia, quebraram todas as canecas de cerveja, e quando os homens os expulsaram com seus forcados, juraram que voltariam para incendiar tudo aqui.Ayama e os anciões fizeram uma coleta, e conseguiram dinheiro suficiente para contratar Kapak e seus homens, para nos defender quando os bandidos voltarem. Desde então, mestra, os homens de Kapak permanecem aqui, brigando, bebendo e cercando as mulheres, a tal ponto que os habitantes já começam a dizer que o remédio é pior do que a doença. Mas entre, mestra, entre. Ayama ficará feliz ao vê-la.

A rechonchuda Ayama parecia mais pálida e mais magra do que na última vez em que Yapaki a vira. Recebeu Yapaki com uma cordialidade inesperada, sabia, também não aprovava as Amazonas Livres, mas aprendera pela experiência que eram hóspedes quietas, que não criavam problemas, não se embriagavam, não quebravam bancos e canecas de cerveja, e pagavam suas contas direito. A reputação de um hóspede não macula a cor de seu dinheiro, pensou Yapaki, irônica.

- Já soube o que aconteceu, minha boa mestra! Aqueles homens horríveis, o bando de Cicatriz, mataram meu marido, sem qualquer motivo... só porque Pacha jogou uma caneca de cerveja num deles, que tentava pôr suas mãos imundas em minha filha, a pequena Koya, que ainda nem tem quinze anos! Monstros!

- E o mataram por isso? Lamentável! - murmurou Yapaki.

Mas sua compaixão era pela menina. Durante o resto de sua vida, Koya haveria de se lembrar que o pai fora morto ao defendê-la, porque ela não era capaz de se defender. Como todas as mulheres da Ayni, Yapaki prestara o juramento de se defender, de não recorrer a nenhum homem em busca de proteção. Pertencia à Ayni por metade de sua vida; parecia absurdo que um homem devesse morrer por defender uma moça de avanços a que ela própria não podia se esquivar.

- Ah, mestra, não sabe como é estar sozinha, sem um homem. Como sempre viveu sozinha, não pode imaginar.

- Vocês, mulheres da Ayni, intitulam-se livres, mas me parece que sempre fui livre, até agora, quando devo me manter vigilante noite é dia, para evitar que alguém tenha a idéia errada sobre uma mulher sozinha. Ainda outro dia um dos homens de Kapak me disse... e esse é outro problema, os homens de Kapak. Comem tudo o que temos, mestra, e não há lugar no estábulo para os animais dos hóspedes pagantes, com metade da aldeia mantendo seus animais aqui, contra uma nova investida dos bandidos, e esses espadachins de aluguel bebendo a cerveja do meu filho dia após dia...

Abruptamente, ela lembrou seus deveres como hospedeira.

- Mas venha para a sala comum, mestra, trate de se esquentar, enquanto providencio seu jantar. Temos lombo de alpaca assado. Ou se preferir alguma coisa mais leve, não gostaria de um guisado de Chinchila com cogumelos? A estalagem está lotada, é verdade, mas tenho um pequeno quarto no alto da escada que pode ocupar, um quarto à altura de uma grande Senhora.

Mais tarde, Yapaki desceu para a sala comum. Como todas as mulheres da Ayni, aprendera a ser discreta quando viajava sozinha; uma mulher solitária era alvo fácil de indagações, no mínimo, e era por isso que sempre viajavam em dupla. Isso acarretava certa estranheza, até especulações obscenas, mas também evitava as abordagens desagradáveis a que estava sujeita uma mulher viajando sozinha nos Altiplanos. Claro que qualquer Ayni Livre saberia se defender se a situação fosse além das palavras grosseiras, mas isso podia acarretar problemas para a Irmandade .

Era melhor se comportar de uma maneira que reduzisse ao mínimo a possibilidade de encrencas. Por isso, Yapaki sentou sozinha num canto perto da lareira, manteve o capuz puxado em torno do rosto - não era mais jovem, nem muito bonita - tomou sua chicha, esquentou os pés, e não fez nada para atrair a atenção de ninguém. Ocorreu-lhe que naquele momento, apesar de se intitular uma Ayni Livre, tinha de ser muito mais contida do que as jovens filhas de Ayama, circulando de um lado para outro, protegidas pelo teto da família e a presença da mãe.
Ela terminou sua refeição - optara pelo guisado de Chinchila- e pediu um segundo copo de chicha, cansada demais para subir a escada até seu quarto, exausta demais para dormir se conseguisse.

Alguns dos espadachins de aluguel de Kapak sentavam a uma mesa comprida, no outro lado da sala, bebendo e jogando dados.
Um dos mercenários mais jovens, alto, sem barba, magricela, os cabelos cor de gengibre cortados rentes, levantou-se e veio para sua mesa. Yapaki preparou-se para o inevitável. Se estivesse com duas ou três companheiras da Ayni, teria acolhido com satisfação uma companhia inofensiva, para um drinque juntos, uma conversa sobre a situação das estradas. Mas uma Ayni sozinha NÃO bebia com homens em tavernas, e Kapak sabia disso tão bem quanto ela.

Um dos mercenários mais velhos devia estar querendo se divertir à custa do garoto inexperiente, espicaçando-o a provar sua virilidade pela abordagem da Ayni, à espera das risadas com a rejeição inevitável.
Ao chegar à mesa de Yapaki, o garoto disse, em voz suave, um pouco rouca:

- Boa noite, honrada Senhora
.
Surpresa pela frase cortês, mas ainda cautelosa, Yapaki respondeu:

- O mesmo lhe desejo, jovem senhor.

- Posso lhe oferecer uma caneca de chicha?

- Já tenho o suficiente para beber, mas agradeço a gentil oferta.

Alguma coisa fora de sintonia na atitude do rapaz, quase efeminada, alertou-a; tudo indicava que a proposição dele não seria habitual. Todo mundo sabia que as Ayni Livres tomavam amantes se e quando escolhiam, e muitos homens achavam que isso significava que sempre havia uma possibilidade, em qualquer ocasião. Yapaki era hábil em rejeitar esses avanços velados, sem jamais chegar a uma recusa categórica; com abordagens mais grosseiras, ela não perdia tempo com cortesias. Mas não era isso que o rapaz queria; Yapaki sabia quando um homem a fitava com desejo, quer traduzisse isso em palavras ou não. Havia algum interesse no rosto daquele rapaz, sem dúvida, mas não era um interesse sexual. Mas então o que ele queria?

- Posso... posso sentar aqui, e conversar por um momento, honrada Senhora?

Yapaki poderia lidar com a grosseria. Mas aquela cortesia excessiva era desconcertante. Estariam apenas se divertindo com alguém que odiava mulheres, apostando que ele não teria coragem de falar com a mulher? Ela disse, em voz neutra:

- Esta é uma sala pública; as cadeiras não me pertencem. Sente onde quiser.

Contrafeito, o rapaz sentou. Parecia mesmo bastante jovem, ainda imberbe, mas tinha as mãos bem calosas, e uma cicatriz antiga numa das faces; não era tão jovem quanto ela pensou.

- É uma Amazona Livre, mestra

Ele usou o termo comum, um tanto ofensivo, mas Yapaki não ficou ressentida. Muitos homens não conheciam outro nome.

- Sou, sim, mas preferimos dizer que sou Ayni, uma Renunciante da Irmandade das Mulheres Libertas.

- Posso perguntar... sem intenção de ofender... por que o nome Renunciante, mestra

Na verdade, Yapaki ficou satisfeita pela oportunidade de explicar.

- Porque, senhor, em troca de nossa liberdade como mulheres da Ayni, prestamos um juramento de renuncia: aos privilégios que pode-ríamos ter se optássemos por pertencer a algum homem. Se renunciamos às desvantagens de ser uma propriedade e serva, devemos também renunciar aos benefícios que possam advir dessa situação, para que nenhum homem possa nos acusar de tentar ter o melhor das duas opções.

- Parece-me uma opção honrada. Jamais conheci antes uma... uma Renunciante. Diga-me, mestra... - A voz se tornou subitamente estridente. - Suponho que conhece as calúnias que dizem por aí... Como qualquer mulher tem a coragem de ingressar na Ayni, sabendo o que será dito a seu respeito?

- Creio que para algumas mulheres chega o momento em que pensam que há coisas piores do que ser o alvo de difamações públicas. Foi o que aconteceu comigo.

O rapaz baixou os olhos para suas botas.

- Tenho motivos para temer... as mulheres... - murmurou ele, quase inaudível. - Mas me pareceu gentil. E suponho, mestra, que em todos os lugares a que vai nestas montanhas, onde a vida é tão difícil para as mulheres, sempre procura esposas e filhas que estejam descontentes em casa, a fim de recrutá-las para sua Ayni ?

Bem que gostaríamos!, pensou Yapaki, com toda a amargura antiga; mas ela sacudiu a cabeça, e disse:

- Nossos regulamentos proíbem. A lei determina que uma mulher deve nos procurar por sua própria iniciativa, e solicitar formalmente permissão para se juntar a nós. Não tenho sequer permissão para dizer às mulheres das vantagens da Ayni, quando perguntam. Só posso falar das coisas a que devem renunciar, por juramento.

- Se fizéssemos o que você sugere, procurássemos esposas e filhas descontentes, a fim de atraí-las para a Ayni, os homens não permitiriam que restasse uma só Casa das Mulheres no Altiplano. Tratariam de queimá-las... com todas nós lá dentro.

Yapaki saiu da sala comum pouco depois, mas por muito tempo não conseguiu dormir. Alguma coisa na voz do jovem, em suas palavras, havia encontrado uma ressonância em sua própria mente e memória. Por que ele a interrogara com tanta insistência? Será que ele tinha uma irmã ou parenta que falara em se tornar uma Renunciante? Ou será que o rapaz, um efeminado óbvio, sentia inveja, porque ela conseguira escapar ao papel determinado pela sociedade para seu sexo, o que ele não podia fazer? Será que ele fantasiava alguma fuga assim às exigências feitas aos homens? Com toda certeza, não; havia vidas mais simples para homens que a de um espadachim de aluguel! E os homens tinham uma opção sobre as vidas que poderiam levar... ou pelo menos mais opções do que a maioria das mulheres.

Yapaki optara por se tornar uma Renunciante, uma pária entre a maioria das pessoas no Altiplano. Até mesmo a estalajadeira só a tolerava porque ela era uma freguesa regular e pagava bem, mas igualmente toleraria uma prostituta ou um trapaceiro itinerante, contra os quais teria menos preconceitos.
Será que o rapaz, especulou ela, seria um dos espiões apregoados em rumores que a cortes, o corpo governante em Tawantin, enviava para denunciar Renunciantes que violavam os termos de sua carta, tentando recrutar mulheres para a Ayni ? Se era esse o caso, pelo menos ela resistira à tentação. Nem sequer dissera, embora tentada, que se Ayama fosse uma Renunciante se sentiria competente para dirigir a estalagem sozinha, sem a ajuda das filhas.

Ainda pensando, ela adormeceu.
Despertou horas mais tarde ao som de cascos de animais, o choque de aço, gritos, um tremendo alarido lá fora. Mulheres berravam em algum lugar. Yapaki se vestiu, e desceu correndo. Encontrou Kapak parado no pátio, dando ordens. Por cima do muro, ela viu o céu avermelhado por chamas. Cicatriz e seus bandidos, ao que parecia, estavam à solta na cidade.

- Vá até a retaguarda deles, Onanchac, - ordenou Kapak, - solte os animais e afugente-os, para que eles sejam obrigados a lugar, em vez de atacar e fugir em seguida, como fizeram antes. E como todos os bons animais estão guardados aqui, um de vocês deve ficar para impedir que eles peguem os nossos... os outros venham comigo, as espadas prontas para o combate.
..
Ayama se encolhia sob o beirai de um prédio próximo, as filhas e as servas ao seu redor.

- Vão nos deixar aqui, desprotegidas,...

Kapak gesticulou para o jovem Marco.

- Você! Fique aqui, e guarde os animais e as mulheres... O rapaz protestou:

- Não! Entrei em seu bando com a promessa de enfrentar Cicatriz, com o aço na mão! É uma questão de honra... acha que preciso de seus dinheiros sujos?

Além dos muros, reinava a confusão.

- Não tenho tempo para discutir - respondeu Kapak. - Yapaki, esta luta não é sua, mas sabe que sou um homem de palavra; fique aqui, proteja os animais e estas mulheres, e farei com que seu tempo valha a pena!

- À mercê de uma mulher? Vai deixar uma mulher para nos proteger? É a mesma coisa de usar um camundongo para vigiar um leão!

Marco, que virou-se para Yapaki, com os olhos inflamados.

- Tudo o que me foi prometido por esta missão é seu, mestra, se me liberar para enfrentar meu inimigo jurado!

- Pode ir - disse Yapaki. - Eu cuidarei delas.

Yapaki observou-os se afastarem, pensando em suas primeiras batalhas. Talvez um gesto, uma frase, alguma coisa a alertara. O garoto Marco é nobre, pensou ela. Talvez até Waka, bastardo de um grande lorde, quem sabe. Não sei o que ele está fazendo entre os homens de Kapak, mas com certeza não é um espadachim de aluguel comum. O lamento de Ayama fê-la voltar a seu dever:

- Venham comigo! - disse Yapaki, em tom brusco. - Ajudem-me a fechar o portão!

- Não aceito ordens de uma mulher desavergonhada que veste um culote...

- Pois então deixe o portão aberto! - berrou Yapaki, perdendo a paciência. - Deixe Cicatriz entrar aqui sem qualquer dificuldade! Quer que eu vá convidá-lo, ou prefere mandar uma de suas filhas?

- Mãe! - protestou uma garota de quinze anos, desvencilhando-se da mão de Ayama. - Isso não é maneira de falar... Lilla, Ariwa, vamos ajudar a boa mestra a fechar o portão!

Elas se juntaram a Yapaki, empurraram o pesado portão de madeira, baixaram a tranca. As mulheres choramingavam em consternação. Yapaki escolheu uma delas, uma jovem com seis ou sete luas de gravidez, encolhida sob uma manta por cima da cabeça.

- Você! - disse ela, apontando. - Leve todas as crianças para o quarto mais forte lá em cima, tranque as janelas e a porta, não abra até ouvir minha voz, ou a de Ayama!

A jovem não se mexeu, ainda soluçando, e Yapaki acrescentou, ríspida:

- Depressa! Não fique parada aí como uma Chinchila congelada na neve!

Yapaki avaliou as outras mulheres apavoradas. Ayama era um caso irremediável. Era gorda e esbaforida, olhava ressentida para Yapaki, furiosa porque ela fora incumbida de defendê-las. Ainda por cima, tremia à beira de um pânico que poderia contagiar todas; mas talvez ela se acalmasse se tivesse alguma coisa para fazer.

- Ayama, vá para a cozinha, e prepare um ponche de chicha quente - ordenou Yapaki. - Os homens vão querer quando voltarem, e com certeza será merecido. Depois, providencie algum pano para ataduras, caso alguém saia ferido. Não se preocupe, pois ninguém fará nada com você enquanto estivermos aqui.

Yapaki olhou para as mulheres robustas que ficaram ali.

- Entrem no estábulo, e empilhem fardos de feno em torno dos animais, para que eles não possam tirar os animais com facilidade. Não, deixe a lanterna aí; se Cicatriz e seus homens conseguirem chegar aqui, atearemos fogo a alguns fardos. Isso assustará os animais, que poderão matar um ou dois bandidos a coices. De qualquer maneira, vocês poderão escapar enquanto eles pegam os animais. Ao contrário do que talvez tenham ouvido, a maioria dos bandidos pensa primeiro nos animais e no saque. As mulheres jamais ocupam o primeiro lugar de sua lista. Além do mais, nenhuma de vocês tem jóias ou trajes ricos que eles possam querer levar.

Depois que os animais estavam protegidos, as mulheres tornaram a se reunir no pátio, muito nervosas. Yapaki foi até o portão trancado, a faca solta na bainha. As outras mulheres permaneceram sob o telhado da cozinha, mas uma delas, a mesma que tivera a iniciativa de ajudar Yapaki a fechar o portão, tomou uma súbita decisão; levantou a saia até os joelhos, determinada, entrou na cozinha, pegou uma machadinha de cortar lenha, e foi se postar ao lado de Yapaki.

- Koya! - gritou Ayama. - Volte para cá! Fique junto de mim! A jovem lançou um olhar desdenhoso para a mãe, e declarou:

- Se algum bandido escalar o muro, não vai pôr as mãos em mim, nem em «linha irmã, sem enfrentar o aço frio. Não é uma espada, mas acho que até nas mãos de uma garota esta lâmina faria mudá-lo de idéia no mesmo instante! - Ela olhou para Yapaki, com um ar de desafio. -Tenho vergonha de todas vocês, deixando que uma mulher sozinha nos defenda! Até mesmo uma coelha de chifres protege sua cria!

Yapaki ofereceu-lhe um sorriso jovial.

- Se tem tanta habilidade com essa coisa quanto tem coragem, irmã, eu preferia tê-la a defender minhas costas em vez de qualquer homem. Segure a machadinha com as duas mãos, se chegar o momento de usá-la, e não tente qualquer coisa fantasiosa, apenas desfira um bom golpe nas pernas, como se estivesse cortando uma árvore. Ele não estará esperando por isso, entende?

A noite foi se arrastando.
Já começava a pensar que as precauções haviam sido inúteis, que os homens de Cicatriz nunca chegariam ali, quando uma mulher soltou um grito estridente. Yapaki virou-se para ver a borla de um gorro de tricô aparecer por cima do muro; depois, dois homens surgiram em cima do muro, as facas presas nos dentes, deixando as mãos livres para a escalada.

- Ah, então foi aqui que esconderam tudo, as mulheres, os animais... - grunhiu um deles. - Vá pegar os animais, enquanto eu cuido... ei, cuidado!

A advertência foi dada quando ele viu Yapaki se aproximar correndo, com a faca levantada. O homem era mais alto do que Yapaki; enquanto lutavam, ela só podia se defender, recuando passo a passo, na direção do estábulo. Onde estavam os homens? Por que os bandidos haviam conseguido chegar tão longe? Elas seriam a última defesa da aldeia? Pelo canto dos olhos, ela divisou o outro bandido avançando, com sua espada erguida; tratou de dar volta, recuando cautelosa, a fim de encarar os dois.

Mas nesse instante Koya soltou um grito estridente, a machadinha faiscou uma vez, e o segundo bandido caiu, uivando, o sangue esguichando da perna. O oponente de Yapaki titubeou ao grito; ela aproveitou para golpeá-lo no ombro, e pegou sua faca, quando ele a deixou cair da mão inerte. O homem caiu para trás, e Yapaki pulou em cima dele.

- Koya! - gritou ela. - Vocês, mulheres! Tragam cordas, qualquer coisa para amarrá-los... outros podem aparecer...

Ayama se adiantou com uma corda de varal. Recuou enquanto Yapaki amarrava o homem, e olhou para o outro bandido, caído numa poça de seu próprio sangue. Sua perna fora quase cortada, na altura do joelho. Ele ainda respirava, mas já não tinha mais condições de gemer, e morreu enquanto as mulheres o observavam. Ayama fitou Koya, horrorizada, como se sua jovem filha tivesse de repente adquirido uma segunda cabeça.

- Você o matou - balbuciou ela. - Cortou sua perna!

- Preferia que ele tivesse cortado a minha, mãe? - perguntou Koya, inclinando-se em seguida para examinar o outro bandido. -Ele só foi ferido no ombro. Viverá para ser enforcado.

Respirando com dificuldade, Yapaki empertigou-se, deu um puxão final na corda. Olhou para Koya, e disse:

- Salvou minha vida, irmã.

A moça sorriu, excitada, os cabelos caindo sobre os olhos. O granizo começou a cair no pátio. Subitamente, Koya passou os braços em torno de Yapaki, que retribuiu ao abraço, ignorando a expressão perturbada da mãe.

- Uma das nossas não poderia ter feito melhor. Meus agradecimentos, irmã.

- Escutem... acho que os homens estão voltando.

Um minuto depois ouviram o chamado de Kapak, e foram abrir o portão. Os homens traziam mais de uma dúzia de bons animais. Kapak riu, e comentou:

- Os homens de Cicatriz não terão mais uso para eles, e com isso estamos bem pagos. Ah, vocês, mulheres, pegaram os últimos deles?

Ele olhou para o bandido morto na poça de sangue, e depois para o outro, amarrado com a corda de varal de Ayama.

- Alguns dos meus homens estão feridos, Mestra. Tem alguém aqui com experiência em tratar de ferimentos? Eu lhe suplico... pode me acompanhar? É o garoto... o jovem Marco. Ele foi ferido, gravemente, mas não quer nos deixar tratá-lo enquanto não falar com você. Diz que tem uma mensagem urgente, muito urgente, que deve transmitir antes de morrer...

- Pela misericórdia de Paccha Mama! - exclamou Yapaki, chocada. -Quer dizer que ele está morrendo?

Na escada, ela ouviu a voz de um dos homens de Kapak, argumentando:

- Não vamos machucá-lo, rapaz, mas se não cuidarmos desse ferimento, você pode morrer, entende?

- Fique longe de mim! Juro pelos infernos de Collca e pelas tripas derramadas de Cicatriz morto que enfiarei esta faca na garganta do primeiro homem que me tocar!

Lá dentro, à luz de uma tocha, Yapaki viu Marco meio sentado, meio deitado numa cama de palha. Tinha uma adaga na mão, e mantinha os outros à distância, mas estava pálido como a morte, a testa coberta por um suor gelado. A cama se avermelhava com uma poça de sangue. Yapaki conhecia o suficiente de ferimentos para saber que o corpo humano podia perder mais sangue do que a maioria julgava possível sem um grave perigo; mas para qualquer pessoa comum a situação parecia alarmante. Marco olhou para Yapaki, e balbuciou:

- Mestra, eu suplico... preciso lhe falar a sós...

- Seu tolo - murmurou Yapaki. - Não posso fazer por você nem a metade do que seu amigo é capaz.

- Saiam todos - disse Yapaki. - Conversarei com ele, e se não quiser escutar, já tem idade suficiente para arcar com as conseqüências de sua loucura.

Os homens se retiraram, e ela acrescentou:

- Espero que seja mesmo muito importante para que arrisque sua vida, garoto tolo!

Mas uma grande e terrível suspeita já aflorara na mente de Yapaki
.
- Sabe o quanto é provável que esse ferimento seja mortal? Não tenho a menor habilidade com essas coisas, e seus camaradas poderiam cuidá-lo melhor.

- Sei que será a morte para mim, a menos que você me ajude -balbuciou a voz rouca, cada vez mais fraca. - Nenhum desses homens é bastante camarada para que eu possa confiar nele... mestra, ajude-me, eu lhe suplico, em nome da misericordiosa Paccha Mama... sou uma mulher!

Yapaki respirou fundo. Já começara a desconfiar... e agora tinha a confirmação.

- E nenhum dos homens de Kapak sabe...

- Nenhum. Convivo com eles há meio anos, e não creio que qualquer um desconfie... e temo as mulheres ainda mais. Mas achei que poderia confiar em você...

- Pode contar comigo - murmurou Yapaki. - Sou obrigada por juramento a jamais recusar ajuda a qualquer mulher que me peça ajuda, em nome da Deusa. Mas deixe-me ajudá-la agora, minha pobre moça, e ore a Paccha Mama para que não tenha demorado demais.

- Mesmo que seja... prefiro morrer como uma mulher do que... desgraçada e desmascarada. Já conheci tanta desgraça...

- Fique quieta, criança!

Mas ela caiu de costas na enxerga; desmaiara de fato desta vez, finalmente. Yapaki cortou o culote de couro, examinou o ferimento que se estendia da coxa ao monte púbico. Sangrara bastante, mas Yapaki concluiu que não era fatal. Ela pegou uma das toalhas limpas que os homens haviam trazido, comprimiu-a contra o ferimento; quando a hemorragia quase parará, Yapaki franziu o rosto, refletindo que haveria necessidade de pontos. A moça não se mexeu quando ela saiu para o corredor. Kapak apareceu no meio da escada:

- Qual é a situação?

- Mande Koya vir até aqui - pediu Yapaki. - Diga a ela para trazer fio de linho e uma agulha, ataduras, água quente e sabão.

Koya tinha coragem e força; e ainda mais importante, saberia guardar um segredo, se Yapaki lhe pedisse, em vez de comentar a descoberta. Kapak indagou, em voz baixa, que não se projetava além do ouvido de Yapaki:

- É uma mulher... não é mesmo? Franzindo o rosto, Yapaki perguntou:

- Esteve escutando a conversa?

- Claro que não. Mas tenho o cérebro com que nasci, e me lembrei de algumas coisas. Pode pensar em qualquer outro motivo para que um membro do meu bando não nos deixe vê-lo sem o culote? Quem quer que ela seja, tem coragem suficiente por dois homens!
Yapaki balançou a cabeça, consternada. No final das contas, todo o sofrimento da moça fora inútil, pois o escândalo e desgraça seriam inevitáveis.

- Kapak, você prometeu que minha participação seria recompensada. Deve-me isso, ou não?

- Claro que devo.

- Pois então jure por sua espada que nunca abrirá a boca sobre isso, e estou paga. Acha justo?

Kapak sorriu.

- Não vou privá-la de sua recompensa por isso. Acha que quero que se espalhe por toda a região que Kapak das Montanhas Fen não sabe distinguir homens de mulheres? O jovem Marco cavalgou com meu bando por meio ano, e provou ser um homem de verdade. Se sua irmã de adoção, parenta, prima, ou como quer que você queira se intitular, resolve tratá-lo pessoalmente, e levá-lo para casa em seguida, o que meus homens podem dizer? Não posso admitir que ninguém fique pensando que uma mulher matou Cicatriz debaixo do meu nariz!

Ele pôs a mão no punho da espada, e arrematou:

- Que Collca deixe esta mão trêmula se eu disser qualquer palavra a respeito. Mandarei Koya vir até aqui.

Kapak se retirou, e Yapaki voltou para junto da moça. Ela ainda estava inconsciente. Quando Koya entrou, Yapaki disse, bruscamente:

- Segure o lampião ali; quero dar os pontos antes que ela recupere a consciência. E tente não vomitar, nem desmaiar; o serviço tem de ser feito depressa, ou precisaremos imobilizá-la à força.
Koya soltou uma exclamação de espanto à visão da moça e do ferimento, que recomeçara a sangrar.

- Uma mulher! Abençoada Evanda! Ela é de sua Irmandade, Yapaki? Sabia disso?

- Não às duas perguntas. Ilumine aqui...

- Deixe comigo. Já fiz isso muitas vezes, e tenho as mãos firmes. Uma ocasião, quando meu irmão se feriu na coxa, ao cortar lenha, eu mesma costurei. Além disso, sempre ajudo a parteira. Segure o lampião você.

Aliviada, Yapaki entregou a agulha. Koya começou a dar os pontos, com extrema habilidade, como se bordasse uma almofada.
Depois que terminou, Koya foi buscar um copo de chicha para a mulher, segurou sua cabeça, enquanto ela bebia. Um pouco de cor voltou às faces pálidas, a respiração se tornou mais fácil. Koya estendeu uma de suas camisolas.

- Acho que ficará mais confortável nisto. Gostaria de poder levá-la para a minha cama, mas é melhor não movê-la por enquanto. Yapaki, ajude-me a levantá-la.

Com um travesseiro e lençóis limpos, ela se empenhou em tornar a cama de palha mais confortável.

- Pela Deusa! Criança, quem é você?

O rosto pálido se contraiu numa careta que Yapaki reconheceu, horrorizada, ser um arremedo de sorriso.

- Eu... não sou ninguém. Pensava em mim mesma como a filha do kuraka Alaric. Já ouviu a história? A família Alaric era orgulhosa e rica, aparentada com a família Aillard. Gente muito importante para Yapaki ter algum conhecimento pessoal; possuíam o sangue antigo Inca.

- É verdade, uma família orgulhosa - murmurou a mulher. - O nome de minha mãe era Kyria, irmã mais nova do kuraka Ardais. Ainda assim, era de linhagem tão nobre que ao se descobrir que esperava criança de um dos lordes do Waka, em Tawantin, levaram-na para casar às pressas com Alaric. E meu pai... o homem que sempre acreditei ser meu pai... orgulhava-se de sua filha. Durante toda a minha infância ouvi como ele tinha orgulho de mim, porque eu casaria no Waka, ou iria para um dos Templos, e me tornaria uma poderosa Guardiã. E de repente... apareceram Cicatriz e seu bando, saquearam o castelo, levaram algumas mulheres. Quando Cicatriz descobriu quem era uma de suas cativas... o mal já estava feito, mas ainda assim ele pediu resgate a meu pai. E meu pai, aquele mesmo o kuraka Alaric que não tinha palavras de orgulho suficientes para sua filha, que confirmaria suas ambições por um casamento no Waka, meu pai...

Ela engasgou por um instante, mas logo continuou:

- Ele mandou dizer que se Cicatriz pudesse me garantir... intacta... então pagaria um resgate alto; mas se não, ele se recusava a pagar qualquer coisa. Pois se eu estivesse... arruinada... não teria qualquer uso para ele, e Cicatriz podia me enforcar, ou me entregar a um de seus homens, como achasse melhor.
Yapaki fechou os olhos, em horror, vendo o homem que acolhera feliz a bastarda de sua esposa... mas apenas enquanto ela pudesse ajudar em suas ambições! Os olhos de Koya estavam marejados de lágrimas.

- Que coisa terrível! Como algum homem...

- Passei a acreditar que qualquer homem seria capaz disso, -declarou a moça, - pois Cicatriz se mostrou tão furioso com a recusa de meu pai que me entregou a um dos seus homens como diversão, e puderem ver como ele me usou. Esse eu matei uma noite, enquanto ele dormia, depois que finalmente se convenceu de que me espancara até a submissão... e assim consegui fugir, voltei para minha mãe, que me recebeu com lágrimas e compaixão, mas vi em sua mente que seu maior medo agora era o de que pudesse envergonhá-la, se estivesse esperando um bastardo de Cicatriz. Ela temia que meu pai dissesse tal mãe, tal filha, e minha desgraça ressuscitaria a história da sua. E não pude perdoar minha mãe... por ela continuar a amar e a viver com aquele homem que me rejeitara, me condenara a tal destino. Juntei-me aos homens de Kapak, e assim alcancei minha vingança...

Koya estava chorando, mas o rosto da moça era como pedra. Aquela calma era mais terrível do que a histeria; já se encontrava além das lágrimas, num lugar em que pesar e satisfação eram a mesma coisa, em que se usava a máscara da morte. Yapaki murmurou:

- Você se encontra segura agora, ninguém lhe fará mal. Mas não deve mais falar, pois está fraca da perda de sangue. Tome o resto da chicha, criança, e trate de dormir.

Ela sustentou a cabeça da moça enquanto esta bebia a chicha, dominada pelo horror. Mas também sentia admiração. Cativa, espancada, violada, depois rejeitada, aquela moça recuperara a liberdade matando um dos bandidos; sobrevivera à posterior rejeição da família para tramar sua vingança, e a executara, como só um nobre seria capaz de fazer.
Os olhos da mulher fecharam, suas mãos apertaram as de Yapaki, e ela sussurrou:

- Tive minha vingança, agora posso morrer. E com meu último sopro eu a abençoarei, porque me permitiu morrer como uma mulher, não num disfarce odiado, entre homens...

- Mas não vai morrer - murmurou Yapaki. - Tenho certeza que viverá, criança.

- Não! - O rosto da mulher se contraía em linhas obstinadas de recusa. - O que a vida reserva a uma mulher sem amigos e sem parentes? Pude suportar viver sozinha, em segredo, entre homens, disfarçada, enquanto acalentava o pensamento da minha vingança, que me fortalecia naquela... farsa diária. Mas odeio os homens, abomino a maneira como falam das mulheres entre eles. Prefiro morrer a voltar ao bando de Kapak, ou continuar a viver entre homens.

Yapaki puxou a moça para seus braços, comprimiu-a contra seu peito.

- Fique quieta, criança. Está exausta, e não deve falar assim. Vai se sentir diferente depois de dormir.

Mas Yapaki podia sentir o desespero da mulher em seus braços, e sua raiva transbordou
Ela deixou que a raiva fluísse e transbordasse. Sacudiu a desconhecida, até despertá-la, sabendo que ela já estava morrendo, por sua vontade.

- Escute! Tem de me escutar! Não deve morrer! Não depois que sofreu tanto! É o caminho de uma covarde, e você provou muitas vezes que não é covarde!

- Minha irmã, deixem-me lhes falar sobre a Irmandade das Mulheres Livres, o que os homens chamam de Amazonas Livres. Deixem-me falar sobre os costumes das Renunciantes, obrigadas pelo Juramento, a Ayni...

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