terça-feira, 5 de agosto de 2008

Corda Azul por Lara


Corda azul

A cada noite, gestos iguais como quem come um bife com cogumelos ao almoço no mesmo restaurante, cada quinta-feira, desde há 30 anos.
Ela veste camisas de renda, transparentes. Sempre o mesmo modelo. Curtas. É ele que lhas compra. Mal lhe sobram da anca. Fica-lhe o rabo destapado, como agora que se dobra um pouco e tira o preservativo da gaveta. Dobrada sob a luz baça do candeeiro, peça de design, como o resto do quarto. Preto e branco com almofadas vermelhas, ponteando.

Ela há-de sorrir-se de aqui a bocadinho. Muito quieta, a olhar aquele sem jeito que é ele dobrado, calvo apesar da idade, suado, a desenrolar a borracha sobre o sexo. Coloca-o ela que é mais rápido. Cuida que não o toque com as unhas que tem compridas com um brilho de verniz discreto.

Uma vez por noite, todas as noites.

Ela deitada de quatro sobre o tapete. Ele entrando no quarto.
Ela sorri-se. Coloca a carteirinha embrulhada em papel de seda verde, na mesa do seu lado. Nunca ela se colocou de quatro. Nem em cama, menos ainda em chão de quarto. Nem em viagem, motel ou estância de luxo. A posição de sexo é só uma. E não é de pé, nem outra que não seja uma, a única. Noite após noite. Sempre depois de ter passado um dia ao outro dia. Nunca depois de o sol se ter posto, antes do jantar ou quando calha.

Senhores! Que qualquer hora dava! Pensa ela, de vez em quando, que desde há muito tempo ela já nem pensa isso. Ela esquece. Apenas quando conversa com a amiga. Um dia. Conversando, Constança constatou que ela e o marido é sempre àquela hora e é ela deitada, e ele debruçado por cima. Ele muito magro, um ou mais ossos do corpo, carregando uma zona do corpo de Constança, num descuido que, benza-o um qualquer deus, ela quase nem sente, que Constança tem corpo cheio de carnes: as que baste, distribuídas pelo sítio certo.

Ele a colocar o sexo dentro dela como se fosse escarafunchar, buscar bicharoco em toca: meter o pau bem lá no fundo a ver se encontra. E ela recoloca o corpo: não se entrega. Fica quietinha a olhar o tecto, ou fecha os dois olhos, que é mais o costume. De quando em vez, Constança mexe-se, ritmadamente. Coisa de parecer, de não destoar do vai-vem dele: ritmado, certo. Constança, mal comparando, pensa em carro desengatado por ladeira abaixo – nem pára, e acaba em desastre. E ouve cada nota da música que toca no andar de cima – horrível e monótona.

Ele diz-lhe “vamos fazer amor?” e ela sabe que nem é pergunta. É sempre uma ordem e nunca um convite. Um dia, ela disse: hoje não posso. Pensava ela, ainda, que não podia, ao menos em alguns dias. Ele pegou-a com jeito, que ele sabe fazê-lo, e levou-a. Foi a repetição, apenas com a diferença que a ela lhe doeu. Nunca mais. Agora ela sabe. Constança sabe como fazer a coisa. Depois que ele a “convida”, ou mesmo que nem diga, se é hora, ela sobe a escada, espera-o. E é ficar ele por cima, ela por baixo, e é ela pensando em outra coisa, como no outro dia que o imaginou pendurado na corda da roupa. Coisa desmesurada. Louca.

Coisa divertida, mas só depois de contar à Glória, sua amiga, mulher a caminho do terceiro divórcio, e que lhe diz: ”Constança, tu andas nisso porque queres! não o deixas porque te dá muito jeito. Outra qualquer teria inveja, ou nem acreditava. Todos os dias?!” E Glória ri-se, acrescentando: “ que sorte, menina!”. Mas Constança está farta.

Foram muito poucos os intervalos. Três dias, há dez anos, quando abortou do Ricardo. Constança pôs-lhe nome. E ele: “Filhos, nem pensar”. Pagou-se caro em clínica de Londres. E, depois, nem há uns meses, quando foi operada a uma úlcera no estômago. Descanso por mais de quinze dias, além dos dois que passou na Casa de Saúde. “Stress, dizia o médico. Coisa destes tempos.” E ela a pensar que bom que era se ele a despisse, ali no meio do consultório, e lhe desse uma foda. Se a levasse para longe. Ela está certa, enquanto o médico vai falando, falando, na sua frente, que nem precisaria ser operada. “Garanto-lhe, o senhor doutor até podia escrever um artigo científico e outro religioso, que coisas destas, sendo da natureza, podem ser tidas por milagre ou avanços na ciência. Conhecimento empírico”. Diria ela, se o tivesse dito.

Mas ficou calada. Mas foi operada.

E continuou a ser fodida, todos os dias, pelo seu marido, escritor de romances e novelas: autor premiado.
Desde há uns tempos, vai talvez para seis meses, Constança ensimesmou nos planos. Vai conjecturando enquanto sente os espasmos dele. Planos malucos, como ela só os nota quando conta à Glória entre duas cervejas geladas, ou nadando ambas na piscina.
“São planos esquisitos”. É o que lhe diz Glória que se riu muito daquele, que é recorrente, que a Constança quase lhe parece já ter acontecido: o marido pendurado na corda como se fosse lençol molhado, ou camisola tirada da máquina, 60 graus, lavagem sem centrifugação. Ele balançando com o vento norte, nuzinho, o sexo reduzido a um pendente mole. A cabeça descaída sobre o ombro direito, como um Cristo de Velasquez.

Ela não sabe se ele está morto, se vivo.

As molas são quatro, uma amarela, outra verde e duas encarnadas. Prendem, de cada lado, uma o dedo médio, e a outra, a parte interior do braço que é onde a pele descai um pouco, que ele está ficando flácido apesar de ainda novo. Não coloca mola em cada cotovelo. Cada um deles pende, num ângulo agudo, apontando o chão muito lá em baixo. A corda fica esticada, muito tensa, entre a varanda do último andar, o segundo direito, e o prédio deles, no condomínio fechado. Por baixo, o relvado que contorna a piscina onde ele nunca toma banho que tem poluição e coisas que lhe fazem borbulhagem.

Em cada uma das noites, ele desempenha o acto e dá-o por terminado. Retira-se dela. O preservativo cheiinho de esperma. Pergunta-lhe: gostaste? Ele pergunta sempre, e nem ouve a resposta que já está mijando. Tanto que ele urina depois de cada foda. O tempo de ela se virar e pegar o sono.

Quando o imagina, melhor, quando engendra o plano sentindo-lhe o pénis entrando e saindo, ele está na corda, calçado com as botas pretas de que ele tanto gosta: sola grossa e biqueira de aço. Pesadas o bastante para que fiquem as duas pernas paralelas, quase unidas, balançando ao vento, dependuradas no retesado da corda de nylon. Ela pensa sempre: “Tem que ser uma corda em azul muito escuro.”
“Uma cor de luto”, ri-se a amiga Glória, com aquela mania de interpretar os sonhos. Aquilo era um plano e ela estava acordada. Que sonho que nada! Deixou de contar-lhe, fosse o que fosse, acerca do marido. Entre dois mergulhos, passou falar-lhe de trapos e criadas.

Glória dirá que nunca vira a amiga tão bem. E ninguém lhe pergunta o que ela quer dizer.

Ele a aproximar-se do clímax. Ela a ficar livre. Sabe que apressa o fim se respirar primeiro devagar, depois em crescendo. Se juntar um gemido, um hummm prolongado, e o mantiver, enquanto ele arfa alto, quase em tom agudo, e ela pensa que se fosse cavalo estaria raspando o lençol.
E acaba. Sai de cima dela que suspira num gesto de prazer. Um gesto tão bem feito como se fosse artista e não uma simples engenheira de sistemas. Quinze anos numa multinacional. Ganha para os alfinetes.
Ela sempre molhada. Preparo que baste para que não lhe custe aquele balanço de entra e sai, mete, retira, e fica a olhar para ela, e torna a deslizar para dentro. Constança, tem nisso um esmero: fabrica em abundância o líquido que aplica como óleo contra atrito.
O líquido que sente descer-lhe entre as pernas, não é prazer, é técnica. Também não é esperma: ele nunca derrama. Nem nunca lho coloca na boca. Nem perto, para que ela o toque, o lamba. Constança, um dia, há muito ano, fez menção de beijar-lho, e ele, sorrindo, afagou-lhe o cabelo que ela tinha então pelos ombros, e não muito curto, como o tem hoje. Disse-lhe: “nunca mais faças isso”. Percebeu Constança que seria tudo segundo as normas: Era ele que as impunha, tal qual o ritual de um serviço por noite, 365 noites por ano. Há doze anos.
Às vezes, frequentemente, o gato deita-se na cama e ela vai acariciando.
Nisso, ele não é esquisito nem tem erupções de pele.

Desde há quatro noites. Precisamente no domingo, e hoje é quarta-feira, ela decidiu.
Tem vestida a camisa de noite, curtinha, em cima das cuecas, peças que combinam sempre, na cor ou no padrão.
Ele escreve, no andar de baixo. É coisa que faz por ofício: encher papéis, depois de muitos ficheiros que arquiva num disco ou grava em cêdês. Escreve livros. Num deles, uma mulher é trucidada por um autocarro conduzido por gatos. Coisas estranhas as que ele conta. Ele lê-lhe, muitas vezes, excertos. Pergunta-lhe. Às vezes, ela dá-lhe dicas, como naquele em que ele pensara matar o personagem com uma bala entre os olhos e ela sugeriu a água da piscina aquecida a 300 graus.
Mas, desde há uns tempos, ela aproveita a imaginação que tem muito rica, diz ele: “devias escrever, Constança”, apenas para construir o plano. Tornou-se uma obsessão.
E hoje, quarta-feira, vai ser o dia certo. Constança terminou tudo no domingo. No enredo, não há psiquiatras, nem analistas, e ela não sabe se perde a fortuna que ele trouxe por morte dos pais e das muitas vendas e traduções. Não pensou nisso, nem sabe para quem fica a casa. Sabe, sim, das noites. E sobretudo, sabe alguma outra coisa que ela nem percebe, senhora engenheira de sistemas.
Glória dizia-lhe, por tudo e por nada: “Prezo demais a minha liberdade”. E usava umas roupas baratas e tinha um carro em segunda mão e uma empregada três vezes por semana. A sua amiga Glória, chefe dos serviços administrativos da empresa.

Ele escreve até muito tarde, mas antes, a uma hora bem marcada, meia-noite, ou rondando, sobe ao quarto e fode-a.
Constança já pensou em fazer risquinhos na parede por detrás da cabeceira da cama, sugestão da Glória que se diverte à brava. Desistiu da ideia, que ele ainda pensava coisas. Voltaria ao que estava latente desde há tantos anos. Nunca contara a Glória. Nunca contara. Segredo que guardara nem ela sabe como. E mesmo que não fosse isso, se ele visse os riscos viria com aquele rosário de perguntas que faz se ela muda a norma, se diz coisa que ele não espera, e nem pensar, que ela nunca falha na hora do jantar: “Onde foste, onde ouviste, quem te disse, de onde vieste? Como sabes?” mesmo indo com o motorista, o choninhas do Santareno, de casa à empresa, e no regresso. E poderia acontecer. Fora uma única vez. Uma sova de cinto. Motivo: Constança recusara-se. Dissera: hoje nãoposso. Não esta noite.” Fez finca-pé, gritou, trancou-se no quarto. Na manhã seguinte, saía ela do banho, sovou-a. Constança nunca disse a ninguém. Nunca mais se negou.
Se ela nem subiu na empresa, que teria que deslocar-se em viagens. Isso Glória sabe: dos ciúmes. “Uma estupidez, essa, que tu alimentas”. E ela concorda, mas na hora vai ficando, olhando as mordomias, os casacos na moda, as férias sempre em grande, o filho interno num belíssimo colégio, duas criadas e uma mulher a dias. “Merdas”- pensa de vez em quando, mas esquece. Ou nem sequer é isso. Ele trata-a com esmero não fora aquele exagero que está fartando.
E ele a dizer-lhe, cada uma das noites: “Vai subindo e despe-te que eu vou já. Fodo-te toda, minha querida” e a dar-lhe um beijo distraído sobre a parte do corpo que esteja mais a jeito. E rindo. Ri sempre com um rir divertido.

Como diz a Glória: “ Tu, se calhar, até gostas”.

E hoje é quarta-feira. Ela pensou o dia por ter grande afinidade com o número quatro. E, depois, ficaria livre para o passeio da empresa no domingo: ele nunca permite. Nem ela fala nisso.
Recostada nas muitas almofadas, o edredão tapando-lhe as pernas, Constança lê um artigo sobre o tema da reunião que marcou para amanhã ao meio-dia.
Daqui a pouco, ele subirá. Vai repetir-se, igual.
Ela sorri-se. Ele irá entrar naquela porta.
Enquanto subiu a escada e atravessou o corredor, terá despido cada peça de roupa. Empurrará, com um ombro, a porta do quarto que ela deixou encostada.
Quando ele entrar, Constança verá que traz, apenas, sapatos e peúgas, e as ceroulas que sempre usa, em algodão branco, imaculado. No braço esquerdo, será nesse, como é seu costume, trará a roupa que foi despindo. Terá na boca o cinto, preso nos dentes. Colocará toda a roupa, dobrando cada peça, em cima do sofá, aos pés da cama. Um tempo que ele nunca dispensa, o de dobrar, peça por peça, a roupa que veio retirando.
Teatro. Encenação ao mínimo pormenor. Tal qual pensaria Constança, deixando tombar a revista.
Mas nesta noite, ela nem observará, nem lhe verá os pêlos das costas salpicados de branco, ele sentado a descalçar as meias, a tirar os sapatos, o cinto sempre ao lado, do lado oposto àquele em que ela se roda deitando para o chão a revista. Constança sorrirá com um respirar de alívio. Tudo no maior silêncio.
Depois, será como é de uso.
E ele irá mijar.
Levantará a tampa da sanita. Loiça em quadradinhos pretos e vermelhos, oferta de estilista amigo.
Será como pensou. Correrá o plano. A tampa a levantar-se e logo a explosão. E depois pendurá-lo. Cumprir-se-á o plano.

Agora que olha o sangue, os cacos espalhados, um copo de dentes em cima da cama e a roupa que ele deixou bem dobrada salpicada de sangue e o candeeiro caído e o quarto em desalinho, partidos os vidros da janela e partidos os espelhos, caríssimos, que decoravam o quarto, Constança pensa que exagerou a potência da bomba. Levanta-se por entre os destroços. Dói-lhe muito a perna. Dói-lhe muito a cabeça. Onde era a casa de banho, não há quase nada que mostre o que ali havia. Não mais que as duas torneiras, dois cisnes doirados por cima da banheira que voou em estilhaços. Sangue por todo o lado. Constança não encontra bocados do marido. Tudo esmigalhado. Nem um dedo que sobre. Nenhum osso sobre osso.
Volta ao que foi o quarto. Aos restos que ficaram num total desalinho. Como cumprir do plano, é o que a preocupa. Como vai ela pendurar o marido. Colocar na corda os pedaços: pernas, braços, a cabeça, um pé, uma ou as duas mãos. Fazer como previu. Quer voltar à casa de banho. Encosta-se a uma parede e. Sente-se em desespero. A cabeça dói-lhe. Passam-lhe muitas imagens de como foi fazendo. Pensa que devia ter feito um engenho menos potente. Quem lhe deu as dicas não podia pensar nisso, não sabia qual era o objectivo. Ela devia ter previsto. A cabeça sangra-lhe, tem sangue a escorrer-lhe na cara. Constança assusta-se. Chora. Construiu o engenho sem grande dificuldade: uma consulta na net e restos de conversas que soube fazer com o pateta do Ernesto, chefe de serviço, sempre desejoso de mostrar que percebe. E ela, como que brincando, a uma fala do Ernesto: “Olha que giro! Uma bomba na retrete!” e pensando: “ ele levanta sempre a tampa…”
Religiosamente, ergui-a, sim, antes de urinar.
Até disso a Glória lhe dizia: “ que puta de sorte, menina! Um marido que mija só depois de levantar a tampa da sanita!”
Seria apenas preciso ligar o abrir da tampa com o detonador.
E foi o que se deu: um enorme estrondo.
Demasiado, pensa Constança agora que lhe entram pessoas no quarto.
Ela encostada à parede, enrolada, agachada. Vai ficando confusa. Que homens são aqueles a invadirem-lhe a casa, a impedirem-na de tomar um banho, de vestir roupa decente, de pegar ao colo o seu gato que mia no andar de baixo. Colocam-na numa maca. Ela pensa que eles vêm ajudá-la a pendurar os bocados. Farão por ela o resto do plano. Constança relaxa. Olha-lhes cada gesto. Quer mesmo perguntar-lhes se sabem onde está estendida a corda e onde estão as molas. Não sabe se eles a ouvem. Um deles acaricia-lhe as pálpebras, fecha-lhe os dois olhos. Pode ser que eles encontrem algum bocado intacto. Constança diz-lhes que estiquem bem a corda que ela prendeu, mas ficou bamba, entre a varanda do prédio onde eles moram e o prédio da frente. Tudo às escondidas do marido. Tudo numa pressa, antes de entrar em casa, antes do jantar. Disse ao segurança: “ estou a construir um telefone, daqueles antigos, sabe, para o meu Ricardo”. O homem abriu o único olho, que o outro era de vidro, sem perceber do que ela falava, e disse, numa deferência: “Faça favor, Senhora Engenheira, esteja à sua vontade, muito boa noite”. E ainda a ajudou a dar o último nó, bem apertado, na corda de nylon, azul de luto.
Ao dia seguinte contará a Glória.
Glória, sua amiga, embasbacada de não ter pressentido, chorando sobre a campa: “Que bem que trabalhaste, Constança, minha amiga!”,.
E nem mesmo ela sabe como foi o seu plano enorme.
Glória tem sincera pena que tenha falhado.

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Néon


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